quinta-feira, 30 de junho de 2016

A quem interessa a doutrinação do ‘Escola Sem Partido’?

Por Leonardo Dallacqua de Carvalho

Quando este tema é chamado à baila, lembro do artigo do professor Christian Laville intitulado ‘A guerra das Narrativas‘, publicado na prestigiosa Revista Brasileira de História. Em síntese, o referido trabalho é um estudo realizado por Laville que demonstra como a narrativa histórica pode ser apropriada e (re)modelada segundo interesses específicos. No Japão, por exemplo, o autor cita a obrigatoriedade de uma certa ‘eufemização’ de alguns conceitos da história política daquele país para a construção de uma imagem positiva. Assim, quando o professor for explicar a invasão da China pelo Japão na década de 1930, ele deve utilizar o termo ‘progressão militar’, pois é mais suave que o termo ‘invasão’.

Os efeitos da exponencial catequização escolar são muito mais evidentes à luz do ambiente escolar do que qualquer outro suposto discurso. Frequentemente, religiões de matriz afrobrasileira são demonizadas; obras da literatura nacional que versam sobre candomblé ou umbanda sofrem uma espécie de Index Librorum Prohibitorum; a facultativa disciplina de Ensino Religioso, que deveria ser plural e aglutinadora do respeito à crença, tornou-se para muitos um palanque de disputa das religiões dominantes por cabeças.

Uma ‘Guerra das Narrativas’ está presente na política dos Estados, ora como uma Guerra Fria, intramuros das produções intelectuais, dos manuais e das reformas curriculares, ora como Guerra Campal, desnudada perante a sociedade. Todavia, o combate nunca deixou de ser travado. Com as propostas do ‘Escola Sem Partido‘, vivemos a Guerra Campal das narrativas. Travestida de uma suposta ‘democratização’ do ensino, tais propostas visam impor um modelo que opere como censura da liberdade de pensamento e como forma proibitiva de dissertar a respeito de alguns temas, principalmente aqueles de cunho ideológico considerados de esquerda. Se na ditadura militar a censura vinha acompanhada do famigerado fardamento verde, agora, ela veste a roupagem dos ‘cidadãos preocupados’. Esta censura faz parte de um projeto nebuloso de nação preocupada em impor uma narrativa histórica hegemônica de Brasil, seja ela no ofício de historiadores ou nos níveis de educação da população.

O ‘Escola Sem Partido‘ é uma reação de grupos que buscam neutralizar qualquer discussão social, plural e de contextualização histórica pensada na contestação da organização social/econômica hierárquica da sociedade brasileira. Sua falsa neutralidade não clama pela ‘ausência de ideologias’, mas pela imposição da sua ideologia como dominante, confeccionando um tipo de discurso padronizado. Basta entrar em qualquer sala de aula do País para compreender a falseabilidade da predominância de uma doutrinação de esquerda. Pergunte a uma classe do último ano do ensino médio quantos ali se denominam ‘esquerdistas’. Aliás, basta frequentar uma sala de professores para notar como o pensamento vem sofrendo uma guinada à direita nas últimas décadas. Mais ainda, o que se percebe, em algumas partes, é uma juventude seduzida por uma atmosfera radicalizada, guiada por amantes de torturadores e fanáticos religiosos.



Há pouco tempo, falava-se na remodelação do ensino de História ou até mesmo na supressão do seu conteúdo, restringindo-o ao máximo. A dita preocupação com a ‘doutrinação’ tenta iludir principalmente aqueles assustados com a atual conjuntura do extremismo e da polaridade política no País, sobretudo, oferecendo-lhes uma suposta neutralidade pacificadora. Uma miragem que beira a inocência, especialmente porque o ‘Escola Sem Partido‘ age como um instrumento ideológico de doutrinação ao medir forças com aquilo que elege como ‘problema’. Resta investigar a quem interessa tais medidas. Uma das respostas pode estar presente na bibliografia que o referido grupo insistentemente dissemina, recheada do viés doutrinário que lhes interessa. Em outras palavras, podemos questionar qual o partido do ‘Escola Sem Partido’.

No artigo de Laville, mencionado no início desse texto, o autor cita um trecho do livro do escritor tcheco Milan Kundera denominado ‘O Livro do Riso e do Esquecimento‘ (1978) que, oportunamente, serve para finalizarmos esta reflexão: “Para liquidar os povos, começa-se por lhes tirar a memória. Destroem-se seus livros, sua cultura, sua história. E uma outra pessoa lhes escreve outros livros, lhes dá outra cultura e lhes inventa uma outra História.


* Leonardo Dallacqua de Carvalho é graduado e mestre em História pela UNESP. Atualmente doutorando em História na Fundação Oswaldo Cruz-RJ

Texto Original: Blog tudo em debate

terça-feira, 10 de maio de 2016

Ler deveria ser proibido


A pensar fundo na questão, eu diria que ler devia ser proibido.  Afinal de contas, ler faz muito mal às pessoas: acorda os homens para realidades impossíveis, tornando-os incapazes de suportar o mundo insosso e ordinário em que vivem. A leitura induz à loucura, desloca o homem do humilde lugar que lhe fora destinado no corpo social.

Por Guiomar de Grammont*


Não me deixam mentir os exemplos de Don Quixote e Madamme Bovary. O primeiro, coitado, de tanto ler aventuras de cavalheiros que jamais existiram, meteu-se pelo mundo afora, a crer-se capaz de reformar o mundo, quilha de ossos que mal sustinha a si e ao pobre Rocinante. Quanto à pobre Emma Bovary, tomou-se esposa inútil para fofocas e bordados, perdendo-se em delírios sobre bailes e amores cortesãos.

Ler realmente não faz bem. A criança que lê pode se tornar um adulto perigoso, inconformado com os problemas do mundo, induzido a crer que tudo pode ser de outra forma. Afinal de contas, a leitura desenvolve um poder incontrolável. Liberta o homem excessivamente. Sem a leitura, ele morreria feliz, ignorante dos grilhões que o encerram. Sem a leitura, ainda, estaria mais afeito à realidade quotidiana, se dedicaria ao trabalho com afinco, sem procurar enriquecê-la com cabriolas da imaginação.

Sem ler, o homem jamais saberia a extensão do prazer. Não experimentaria nunca o sumo Bem de Aristóteles: o conhecer. Mas para que conhecer se, na maior parte dos casos, o que necessita é apenas executar ordens? Se o que deve, enfim, é fazer o que dele esperam e nada mais?

Ler pode provocar o inesperado. Pode fazer com que o homem crie atalhos para caminhos que devem necessariamente ser longos. Ler pode gerar a invenção. Pode estimular a imaginação de forma a levar o ser humano além do que lhe é devido.

Além disso, os livros estimulam o sonho, a imaginação, a fantasia. Nos transportam a paraísos misteriosos, nos fazem enxergar unicórnios azuis e palácios de cristal. Nos fazem acreditar que a vida é mais do que um punhado de pó em movimento. Que há algo a descobrir. Há horizontes para além das montanhas, há estrelas por trás das nuvens. Estrelas jamais percebidas.

É preciso desconfiar desse pendor para o absurdo que nos impede de aceitar nossas realidades cruas.

Não, não dêem mais livros às escolas. Pais, não leiam para os seus filhos, podem levá-los a desenvolver esse gosto pela aventura e pela descoberta que fez do homem um animal diferente. Antes estivesse ainda a passear de quatro patas, sem noção de progresso e civilização, mas tampouco sem conhecer guerras, destruição, violência. Professores, não contem histórias, podem estimular um curiosidade indesejável em seres que a vida destinou para a repetição e para o trabalho duro.

Ler pode ser um problema, pode gerar seres humanos conscientes demais dos seus direitos políticos, em um mundo administrado, onde ser livre não passa de uma ficção sem nenhuma verossimilhança. Seria impossível controlar e organizar a sociedade se todos os seres humanos soubessem o que desejam. Se todos se pusessem a articular bem suas demandas, a fincar sua posição no mundo, a fazer dos discursos os instrumentos de conquista de sua liberdade.

O mundo já vai por um bom caminho. Cada vez mais as pessoas lêem por razões utilitárias: para compreender formulários, contratos, bulas de remédio, projetos, manuais, etc. Observem as filas, um dos pequenos cancros da civilização contemporânea. Bastaria um livro para que todos se vissem magicamente transportados para outras dimensões, menos incômodas. E esse o tapete mágico, o pó de pirlimpimpim, a máquina do tempo. Para o homem que lê, não há fronteiras, não há cortes, prisões tampouco. O que é mais subversivo do que a leitura?

É preciso compreender que ler para se enriquecer culturalmente ou para se divertir deve ser um privilégio concedido apenas a alguns, jamais àqueles que desenvolvem trabalhos práticos ou manuais. Seja em filas, em metrôs, ou no silêncio da alcova… Ler deve ser coisa rara, não para qualquer um. Afinal de contas, a leitura é um poder, e o poder é para poucos. Para obedecer, não é preciso enxergar, o silêncio é a linguagem da submisso. Para executar ordens, a palavra é inútil.

Alem disso, a leitura promove a comunicação de dores, alegrias, tantos outros sentimentos. A leitura é obscena. Expõe o íntimo, torna coletivo o individual e público, o secreto, o próprio. A leitura ameaça os indivíduos, porque os faz identificar sua história a outras histórias. Torna-os capazes de compreender e aceitar o mundo do Outro. Sim, a leitura devia ser proibida.


Ler pode tornar o homem perigosamente humano.


*Guiomar de Grammont é mineira de Ouro Preto, historiadora, filósofa e escritora. Já publicou contos, antologias, livros sobre historiografia e o romance A casa dos espelhos.







































































































quarta-feira, 4 de maio de 2016

Você é uma pessoa anarquista? A resposta pode te surpreender!

Por David Graeber


É provável que você já tenha ouvido falar sobre quem são xs anarquistas e no que elas/eles supostamente acreditam. Provável que quase tudo o que você tenha ouvido não tenha sentido algum. Muitas pessoas parecem pensar que as pessoas anarquistas são defensores da violência, do caos e da destruição, e que elas se opõem a todas as formas de ordem e organização, que elas são niilistas malucas que apenas querem explodir tudo. Na realidade, nada pode estar mais longe da verdade. Anarquistas são simplesmente pessoas que acreditam que os seres humanos são capazes de comportar-se de uma maneira razoável sem terem que ser forçados a isso. É uma noção bastante simples, na verdade. Mas é a noção que os ricos e poderosos sempre acharam ser a mais perigosa.



Na sua forma mais simples, as crenças anarquistas podem ser resumidas a duas premissas. A primeira é que os seres humanos são, sob circunstâncias normais, tão razoáveis e decentes quanto eles tem a permissão para serem, e daí que eles podem se autogerir e organizar as suas comunidades sem que seja necessário dizer-lhes como. A segunda é que o poder corrompe. Acima de tudo, o anarquismo é apenas uma questão de ter a coragem para tomar os princípios mais simples da decência comum que todos nós vivemos, e segui-las até as suas conclusões lógicas. Por mais estranho que isso pareça, nas mais importantes formas, você provavelmente já é uma/um – você apenas não se tocou disso.
Talvez ajude pegar alguns exemplos da vida cotidiana:
Se há uma fila para pegar um ônibus lotado, você espera a sua vez e evita se acotovelar com os outros mesmo na ausência da polícia?
Se você respondeu que “sim”, então você está acostumado a agir como uma/um anarquista! O princípio anarquista mais básico é a “autogestão”: a premissa de que os seres humanos não precisam ser ameaçados com punição para serem capazes de chegar a entendimentos razoáveis com os outros e tratá-los com dignidade e respeito.
Todas as pessoas acreditam que sejam capazes de comportar-se razoavelmente por elas mesmos. Se elas acham que as leis e a polícia são necessárias, é apenas porque acreditam que as outras pessoas não são capazes. Mas, se você pensar a respeito, as outras pessoas não se sentem da mesma maneira sobre você? Os anarquistas argumentam que quase todo o comportamento anti-social que nos faz crer necessário ter exércitos, polícia, prisões e governos para controlar as nossas vidas é, na verdade, causado pelas injustiças e desigualdades sistemáticas que os mesmos exércitos, polícia, prisões e governos tornam possíveis. É um círculo vicioso. Se as pessoas estão acostumadas a serem tratadas como se as opiniões delas não fossem importantes, elas ficam mais propensas a se tornarem bravas e cínicos, até mesmo violentas – o que, é claro, deixa mais fácil para os poderosos dizerem que as suas opiniões não importam. Uma vez que elas entendem que as suas opiniões importam sim do mesmo jeito que a opinião de qualquer outro, eles tendem a se tornarem extraordinariamente compreensíveis. Para resumir a história: os anarquistas acreditam que para a maior parte das vezes é o poder e os efeitos do poder o que torna as pessoas estúpidas e irresponsáveis.
Você é membro de um clube de esportes ou qualquer outra organização voluntária onde as decisões não são impostas por um líder mas feitas baseadas no consentimento geral?
Se você respondeu que sim, então você pertence a uma organização que trabalha com princípios anarquistas! Outro princípio anarquista básico é a “associação voluntária”. É apenas uma questão de aplicar princípios democráticas na vida cotidiana. A única diferença é que as pessoas anarquistas acreditam que deva ser necessário criar uma sociedade na qual tudo possa ser organizado seguindo essas linhas, todos os grupos baseados no livre consentimento de seus membros, e então, que todos os tipos de organização, seja militares, burocráticas ou grandes corporações, baseadas em cadeias de comando, não seriam mais necessários. Talvez você não acredite que isso seja possível. Talvez sim. Mas toda vez que você chega a um acordo pelo consenso ao invés de ameaças, toda vez que você faz um acordo voluntário com outras pessoas, chega a um entendimento, ou alcança um compromisso tomando a devida consideração das necessidades e da situação particular do outro, você está sendo uma/um anarquista – mesmo se não tenha percebido isso.
O anarquismo é apenas a maneira que as pessoas agem quando elas são livres para fazer do jeito que elas escolheram, e quando elas lidam com os outros que são igualmente livres –  e, portanto, estão conscientes da responsabilidade para com os outros que isso acarreta. Isto nos leva a outro ponto crucial: que enquanto as pessoas possam ser razoáveis e compreensivas quando elas estão lidando com iguais, a natureza humana é tal qual que elas não podem adquirir confiança para isso quando recebem um poder sobre os outros. Dê a alguém tal poder, e esse alguém quase invariavelmente irá abusar dele de um jeito ou de outro.
Você acredita que a maioria dos políticos são egoístas e que não se importam em nada com o interesse público? Você pensa que nós vivemos em um sistema econômico que é estúpido e injusto?
Se você respondeu que sim, então você assinou a crítica anarquista da sociedade atual – no mínimo, nas suas linhas mais gerais. As pessoas anarquistas acreditam que o poder corrompe e que aqueles que gastam as suas vidas inteiras procurando poder são as últimas pessoas que deveriam tê-lo. Anarquistas acreditam que nosso presente sistema econômico está mais propenso a recompensar as pessoas pelo seu comportamento egoísta e inescrupuloso que por serem seres humanos decentes e responsáveis. A maioria das pessoas se sente assim. A única diferença é que a maioria das pessoas não acha que alguma coisa possa ser feita a respeito, ou de qualquer maneira – e isso é o que os servos fiéis dos poderosos estão sempre insistindo – qualquer coisa terminaria por deixar as coisas ainda piores.
Mas e se isso não for verdade?
Existe uma razão real pra acreditar nisso? Quando você pode fazer um teste, a maioria das atuais predições sobre o que aconteceria sem estados ou capitalismo terminam por não terem sentido algum. Por milhares de anos as pessoas viveram sem governos. Em muitas partes do mundo, as pessoas vivem fora do controle dos governos até hoje. Elas não matam umas às outras. Na maioria das vezes elas apenas levam as suas vidas da mesma maneira que qualquer pessoa a levaria. É claro, em uma sociedade complexa, urbana e tecnológica existem muito mais necessidades a serem organizadas: mas a tecnologia pode também facilitar a solução de alguns desses problemas. Na verdade, nós nem começamos a pensar como seriam as nossas vidas se a tecnologia estivesse realmente moldada a serviço das necessidades humanas. Quantas horas seriam necessárias realmente para trabalhar com o objetivo de manter a sociedade funcional – isto é, se nos livrássemos de todas as ocupações inúteis e destrutivas como telemarketing, advogados, carcereiros, analistas financeiros, experts em relações públicas, burocratas e políticos, e afastar as nossas melhores mentes científicas do arsenal espacial ou dos sistemas da bolsa de valores para mecanizar as tarefas perigosas ou desagradáveis como extração de carvão ou limpeza dos banheiros, e distribuir o trabalho restante entre todos igualmente? Cinco horas por dia? Quatro? Três? Duas? Ninguém sabe porque ninguém nem começou a fazer esse tipo de pergunta. Os anarquistas acham que essas são as perguntas que nós devemos começar a perguntar.
Você realmente acredita naquelas coisas que diz para as suas crianças (ou que seus pais te contaram)?
“Não importa quem começou”. “Duas coisas erradas não fazem uma certa”. “Limpe a sua própria sujeira”. “Pense no próximo…” “Não seja mau com as pessoas apenas porque elas são diferentes”. Talvez devêssemos decidir se estamos mentindo para as nossas crianças quando lhes falamos sobre o certo e o errado, ou se estamos com vontade de tomar as nossas próprias premissas seriamente. Porque se você tomar esses princípios morais às suas conclusões lógicas, você chega no anarquismo.
Tome o princípio de que duas coisas erradas não fazem uma certa. Se você levar isso a sério, só isso poderia derrubar quase a base inteira para a guerra e para o sistema de justiça penal. O mesmo serve para o compartilhar: nós sempre estamos dizendo às nossas crianças para aprenderem a compartilhar, para serem compreensíveis com as necessidades alheias, para ajudarem umas às outras; para depois sair para o mundo real onde nós assumimos que todos são naturalmente egoístas e competitivos. Mas uma pessoa anarquista apontaria: na verdade, o que dizemos às nossas crianças é certo. Quase toda façanha na história humana, toda descoberta ou acontecimento que melhorou a vida das pessoas, foi conseguido através da cooperação e da ajuda mútua; mesmo agora, a maioria de nós gasta a maior parte do nosso dinheiro em nossos amigos, amigas e famílias do que em nós mesmos; enquanto não existam dúvidas sobre se sempre existirão pessoas competitivas no mundo, não existe razão para que uma sociedade tenha que ser baseada em encorajar tal comportamento, deixando as pessoas sozinhas para competirem sobre as necessidades básicas da vida. Uma sociedade que encoraja a competição apenas serve aos interesses das pessoas no poder, que querem que vivamos com medo um do outro. É por isso que anarquistas conclamam uma sociedade baseada não apenas na livre associação mas também na ajuda mútua.


Anarquismo
O fato é que a maioiria das crianças cresce acreditando em uma moralidade anarquista e, então, gradualmente tem que perceber que o mundo adulto não funciona dessa maneira. É por isso que tantas se tornam rebeldes, ou alienadas, mesmo suicidas como adolescentes, e finalmente, resignadas e amarguradas como adultos; o seu único apoio, frequentemente, sendo a capacidade de criar crianças suas e fingir que o mundo é justo. Mas e se nós pudéssemos começar a construir um mundo o qual fosse realmente fundado nos princípios da justiça? Esse não seria o melhor presente que alguém pudesse dar às suas crianças?
Você acredita que os seres humanos são fundamentalmente corruptos e maus, ou que certos tipos de pessoas (mulheres, pessoas de cor, gente comum que não é rica ou altamente educada) são espécimes inferiores, destinados a serem governados pelos melhores?
Se você respondeu que “sim”, então, bom, parece que você não é um anarquista depois de tudo. Mas, se você respondeu “não”, então existem chances de que você tenha assinado 90% dos princípios anarquistas e, querendo ou não, está vivendo a sua vida de acordo com eles. Toda vez que tratar um ser humano com consideração e respeito, você está sendo anarquista. Toda vez que você trabalha as suas diferenças com os outros chegando a um compromisso razoável, ouvindo o que os outros tem a dizer ao invés de deixar uma pessoa decidir por todos, você está sendo anarquista. Toda vez que você tem a oportunidade de forçar a alguém a fazer alguma coisa, mas decide apelar ao seu senso de razão e justiça, você está sendo anarquista. O mesmo vale para toda vez que você compartilha alguma coisa com uma pessoa amiga, ou decide quem vai lavar a louça, ou faz qualquer coisa com um olhar na justiça.
Agora, você pode objetar que isso é tudo muito bom como maneira para pequenos grupos se comportarem uns com os outros, mas gerir uma cidade ou um país é uma coisa completamente diferente. É claro, isso não é falso. Mesmo se você descentralizasse uma sociedade e desse a maior quantidade de poder possível às pequenas comunidades, ainda existiriam muitas coisas que precisariam ser coordenadas, desde trilhos de trem até decisões sobre as direções para pesquisa médica. Porém, apenas porque alguma coisa é complicada isso não significa que não possa ser feita. Apenas significa que será mais difícil. Na verdade, as pessoas anarquistas tem todos os tipos de ideias sobre como uma sociedade saudável e democrática poderia se autogerir. Para explicar isso, levaria bem mais do que um pequeno texto introdutório como este; de qualquer forma, nenhuma pessoa anarquista diz ter um plano perfeito. A verdade é que nós provavelmente não podemos imaginar a metade dos problemas que viriam à tona uma vez que tentássemos criar uma sociedade verdadeiramente democrática; mesmo assim, estamos confiantes de que, a ingenuidade humana sendo como é, tais problemas poderiam ser resolvidos. Ou: que eles podem ser resolvidos até que mantenhamos em espírito os nossos princípios básicos – os quais são, em análise final, simplesmente os princípios da decência humana fundamental.
David Graeber é anarquista, antropólogo e professor de antropologia social na Universidade de Londres. Tradução por Rede de Informações Anarquistas.

domingo, 24 de abril de 2016

Para compreender o neoliberalismo além dos clichês



Friedrich Hayek preside, em 1947, a primeira reunião da Sociedade Monte Pèlerin, no resort suíço de mesmo nome. Lançadas em 1938, em Paris, as ideias de Hayek e Von Mises entusiasmaram desde cedo milionários e suas fundações -- principais financiadores do esforço de formulação do projeto neoliberal
Friedrich Hayek preside, em 1947, a primeira reunião da Sociedade Monte Pèlerin, no resort suíço de mesmo nome. Lançadas em 1938, em Paris, as ideias de Hayek e Von Mises entusiasmaram desde cedo milionários e suas fundações — principais financiadores do esforço de formulação do projeto neoliberal

Que é a ideologia hegemônica no Ocidente, há três décadas. Como surgiu, foi adotada pelas elites e tornou-se invisível e difusa. Quais seus paradoxos. Por que esquerda fracassou, até agora, em enfrentá-la
Por George Monbiot | Tradução: Inês Castilho
Imagine se a população da União Soviética nunca tivesse ouvido falar de comunismo. A ideologia que domina nossas vidas não tem nome, para a maioria das pessoas. Mencione-o numa conversa e você verá que seu interlocutor dá de ombros. Mesmo que tenha ouvido o termo antes, encontrará dificuldade para defini-lo. Neoliberalismo: você sabe o que é isso?
O anonimato é tanto sintoma quanto causa de seu poder. Desempenhou um papel importante numa notável sequência de crises: o derretimento financeiro de 2007-8; o ocultamento de riqueza e poder de que os Panama Papers nos oferecem apenas um vislumbre; a lenta derrocada da saúde e da educação públicas; o ressurgimento da pobreza infantil; a epidemia de solidão; o colapso dos ecossistemas; a ascensão de Donald Trump. Mas respondemos a essas crises como se elas emergissem isoladas, aparentemente inconscientes de que foram todas ou catalisadas ou exacerbadas pela mesma filosofia coerente; uma filosofia que tem – ou tinha – um nome. Pode haver maior poder do que operar anonimamente?
O neoliberalismo tornou-se tão penetrante que raramente o reconhecemos sequer como ideologia. Parecemos aceitar a proposição de que essa fé utópica e milenar descreve uma força neutra; uma espécie de lei biológica, como a teoria da evolução de Darwin. Mas essa filosofia surgiu como a tentativa consciente de remodelar a vida humana e mudar o locus do poder.
O neoliberalismo vê a competição como característica definidora das relações humanas. Ela redefine os cidadãos como consumidores, cujas escolhas democráticas são melhor exercidas ao comprar e vender – um processo que supostamente recompensa o mérito e pune a ineficiência. Sustenta que o “mercado” assegura benefícios que jamais poderiam ser conseguidos pelo planejamento.
Tentativas de limitar a competição são tratadas como hostis à liberdade. A ideologia afirma que impostos e regulação deveriam ser reduzidos; serviços públicos, privatizados. A organização do trabalho e a negociação coletiva pelos sindicatos são retratadas como distorções do mercado, que impedem a formação de uma hierarquia natural entre vencedores e perdedores. A desigualdade é requalificada como virtuosa: um prêmio para a utilidade, ela é geradora de uma riqueza que se espalha de cima para baixo, enriquecendo todo mundo. Os esforços para criar uma sociedade mais igualitária seriam ao mesmo tempo contraproducentes e moralmente corrosivos. O mercado asseguraria que todo mundo recebe o que merece.
Internalizamos e reproduzimos estas crenças. Os ricos se convencem de que adquiriram sua riqueza por mérito, ignorando as vantagens – tais como educação, herança e classe social – que podem ter ajudado a lhes garantir isso. Os pobres começam a se culpar por seus fracassos, mesmo quanto pouco podem fazer para mudar as circunstâncias de suas vidas.
Esqueça o desemprego estrutural: se você não tem trabalho é porque não é empreendedor. Esqueça os custos impossíveis da moradia: se seu cartão de crédito está no limite, você é imprudente e imprevidente. Esqueça que seus filhos não têm mais uma quadra de esportes na escola: se ficam gordos, é falha sua. Num mundo governado pela competição, aqueles que ficam para trás passam a ser definidos e a se auto-definir como fracassados.
Entre os resultados, como documenta Paul Verhaeghe no livro What About Me?, estão epidemia de automutilação, distúrbios alimentares, depressão, solidão, ansiedade por desempenho e fobia social. Não surpreende que o Reino Unido, onde a ideologia neoliberal vem sendo aplicada com maior rigor, seja a capital da solidão na Europa.
Agora somos todos neoliberais
O termo neoliberalismo foi cunhado numa reunião de 1938, em Paris. Entre os participantes, havia dois homens que definiriam a ideologia, Ludwig von Mises e Friedrich Hayek. Ambos exilados da Áustria, eles consideraram a social democracia, caracterizada pelo New Deal de Franklin Roosevelt e o desenvolvimento gradual do Estado de bem-estar social da Grã Bretanha, como manifestações de um coletivismo que ocupava o mesmo espectro do nazismo e do comunismo.
Milton Friedman, um dos ideólogos mais importantes do neoliberalismo, reúne-se com o ditador Augusto Pinochet, no Chile, nos anos 1970. Hayek, outro integrante destacado do movimento, diria, sobre o fato: "minha preferência pessoal inclina-se na direção de uma ditadura liberal, ao invés de um governo democrático que não pratique o liberalismo”
Milton Friedman, um dos ideólogos do neoliberalismo (ao centro), reúne-se com ditador Augusto Pinochet, no Chile, nos anos 70. Hayek, outro guru do movimento, diria: “minha preferência inclina-se na direção de uma ditadura liberal, ao invés de um governo democrático que não pratique o liberalismo”
Em The Road to Serfdom (O Caminho da Servidão), publicado em 1944, Hayek argumentava que o planejamento governamental, ao esmagar o individualismo, levaria inexoravelmente ao controle totalitário. Como o livro Bureaucracy, de Mises, The Road to Serfdomfoi amplamente lido. Chamou a atenção de algumas pessoas muito ricas, que viram na filosofia a oportunidade para libertar-se de impostos e regulação. Quando, em 1947, Hayek fundou a primeira organização que iria espalhar a doutrina do neoliberalismo – a Sociedade Monte Pelèrin –, ela foi sustentada financeiramente por milionários e suas fundações.
Com tal apoio, ele começou a criar o que Daniel Stedman Jones descreve, em Masters of the Universe, como “uma espécie de Internacional Neoliberal”: uma rede global de acadêmicos, homens de negócios, jornalistas e ativistas. Apoiadores ricos do movimento fundaram uma série de thinktanks que iriam refinar e promover a ideologia. Entre elas estão o American Enterprise Institute, a Heritage Foundation, o Cato Institute, o Institute of Economic Affairs, o Centre for Policy Studies e o Adam Smith Institute. Também financiaram departamentos acadêmicos, particularmente nas universidades de Chicago e Virginia.
Conforme evoluiu, o neoliberalismo tornou-se mais estridente. A visão de Hayek de que os governos deveriam regular a competição para prevenir a formação de monopólios deu lugar – entre apóstolos norte-americanos tais como Milton Friedman – à crença de que o poder monopolista poderia ser visto como uma recompensa à eficiência.
Uma outra coisa aconteceu durante essa transição: o movimento perdeu o seu nome. Em 1951, Friedman se satisfazia com a descrição de si mesmo como neoliberal. Mas, logo depois disso, o termo começou a desaparecer. Ainda desconhecido, mesmo à medida em que a ideologia tornava-se mais nítida e o movimento mais coerente, o nome perdido não foi substituído por nenhuma alternativa.
No início, apesar de seu generoso financiamento, o neoliberalismo manteve-se nas margens. O consenso pós-guerra era quase universal: as prescrições econômicas de John Maynard Keynes foram amplamente aplicadas. Pleno emprego e combate à fome eram metas comuns nos EUA e na maior parte da Europa Ocidental. As aliquotas máximas do imposto eram altas e os governos buscavam resultados sociais elevados sem constrangimento, desenvolvendo novos serviços públicos e redes de segurança.
Nos anos 1970, contudo, quando as políticas keynesianas começaram a desmoronar e as crises econômicas atingiram EUA e Europa, as ideias neoliberais começaram a entrar no mainstream. Como Friedman ressaltou, “quando chega a hora, é preciso mudar … havia ali uma alternativa pronta para ser agarrada”. Com a ajuda de jornalistas simpáticos à ideia e conselheiros políticos, alguns elementos do neoliberalismo, principalmente suas prescrições de política monetária, foram adotadas pelos governos de Jimmy Carter, nos EUA, e Jim Callaghan, na Grã Bretanha.
Depois que Margaret Thatcher e Ronald Reagan assumiram o poder, o resto do pacote veio a galope: cortes maciços nos impostos dos ricos, esmagamento dos sindicatos, desregulação, privatização, terceirização e competição nos serviços públicos. Por meio do FMI, do Banco Mundial, do Tratado de Maastricht e da Organização Mundial de Comércio, as políticas neoliberais foram impostas – frequentemente sem consenso democrático – em grande parte do mundo. O mais notável é que foram adotadas por partidos que no passado pertenceram à esquerda: Trabalhista, na Inglaterra, e Democrata, nos Estados Unidos, por exemplo. Como observa Stedman Jones, “é difícil pensar em outra utopia que tenha sido realizada tão completamente.”
Pode parecer estranho que uma doutrina que promete escolhas e liberdade possa ter sido promovida sob o slogan “não há alternativa”. Mas, como observou Hayek em uma visita ao Chile de Pinochet – uma das primeiras nações em que o programa foi exaustivamente aplicado – “minha preferência pessoal inclina-se na direção de uma ditadura liberal, ao invés de um governo democrático que não pratique o liberalismo”. A liberdade que o neoliberalismo oferece, que soa tão fascinante quando expressa em termos gerais, acaba por significar a liberdade para a elite, não para os peixes pequenos.
Liberdade em relação aos sindicatos e à negociação coletiva significa liberdade para reprimir salários. Liberdade em relação da regulamentação significa liberdade de envenenar rios, colocar em risco os trabalhadores, cobrar taxas iníquas de juros e criar instrumentos financeiros exóticos. Ficar livre de impostos significa ficar livre da distribuição de riqueza que tira as pessoas da pobreza.
Como Naomi Klein documenta em The Shock Doctrine (A Doutrina do Choque), teóricos neoliberais advogam o uso de crises para impor políticas impopulares enquanto as pessoas estavam distraídas: por exemplo, a consequência do golpe de Pinochet, da guerra do Iraque e do Furacão Katrina, que Frieman descreveu como “uma oportunidade para reformar radicalmente o sistema educacional” em New Orleans.
Onde as políticas neoliberais não podem ser impostas domesticamente, elas são impostas internacionalmente, através de tratados comerciais que incorporam os painéis de disputa estado-investidor”: tribunais globais em que as corporações podem pressionar pela revogação de leis e normas que protegem direitos sociais e ambientais. Quando parlamentares votaram para restringir as vendas de cigarro, proteger reservatórios de água das companhias de mineração, congelar contas de energia ou prevenir empresas farmacêuticas de esfolar o Estado, as empresas entraram com processos, muitas vezes bem sucedidos. A democracia reduz-se a um teatro.
Outro paradoxo do neoliberalismo é que a competição universal apoia-se em comparação e quantificação universal. O resultado é que trabalhadores, desempregados e serviços públicos em geral ficam sujeitos a um sistema de avaliação e monitoramento sufocante e enganador, desenhado para identificar vencedores e punir perdedores. Ao invés de nos libertar do pesadelo burocrático do planejamento central, como propôs Von Mises, ele criou um.
O neoliberalismo não foi concebido como um projeto egoísta, mas rapidamente transformou-se nisso. O crescimento econômico tornou-se visivelmente mais lento na era neoliberal (desde 1980 na Grã Bretanha e nos EUA) do que era nas décadas precedentes; mas não para os ultra ricos. A desigualdade na distribuição de renda e riqueza, depois de 60 anos de queda, aumentou rapidamente na nova era, devido à destruição dos sindicatos, à redução dos impostos, ao aumento dos aluguéis, à privatização e à desregulação.
A privatização ou mercantilização de serviços públicos tais como energia, água, ferrovias, saúde, educação, estradas e prisões habilitou as grandes empresas a colocar uma cabina de pedágio diante de bens essenciais e cobrar rendas, seja dos cidadãos ou do governo, para seu próprio benefício. Renda é um eufemismo para dinheiro ganho sem esforço. Quando você paga um preço inflacionado pelo bilhete de metrô, somente parte da tarifa compensa os operadores por seus custos de combustível, salários e outros gastos. O resto reflete o fato de que você está nas mãos deles.
As pessoas que possuem e administram os serviços privatizados ou semi privatizados do Reino Unido fazem fortunas tremendas investindo pouco e cobrando muito. Na Rússia e na Índia, os oligarcas adquiriram bens estatais através de leilões. No México, Carlos Slim teve garantido o controle de quase todos os serviços de telefonia fixa e móvel e logo tornou-se o homem mais rico do mundo.
Friedrich Rayek (direita) encontra-se com Ronald Reagan. Depois de experimentado no Chile de Pinochet, neoliberalismo difundiu-se a partir dos EUA e Grã-Bretanha, a partir de um lema ("não há alternativas") que desmente a suposta aposta dos defensores da doutrina na "liberdade"
Friedrich Rayek (direita) encontra-se com Ronald Reagan. Depois de experimentado no Chile de Pinochet, neoliberalismo difundiu-se a partir dos EUA e Grã-Bretanha, sob um lema (“não há alternativas”) que desmente a suposta aposta dos defensores da doutrina na “liberdade”
A financeirização, como nota Andrew Sayer em Why We Can’t Afford the Rich, teve impacto semelhante. “Como a renda”, diz ele, “os juros são receita acumulada sem qualquer esforço”. À medida em que os pobres tornam-se mais pobres e os ricos mais ricos, o rico adquire controle crescente sobre outro bem crucial: dinheiro. Pagamentos de juros são, de modo devastador, transferência de dinheiro do pobre para o rico. Os preços dos imóveis e a redução de investimentos estatais sobrecarregam as pessoas com dívidas; mas os bancos e os executivos nadam de braçadas.
Sayer argumenta que as últimas quatro décadas caracterizaram-se por uma transferência de riqueza não apenas do pobre para o rico, mas no interior das categorias de riqueza: daqueles que ganham dinheiro produzindo novos bens ou serviços para aqueles que ganham dinheiro assumindo o controle de ativos já existentes e recolhendo rendas, juros ou ganhos de capital. O ganho produtivo foi superado pelo ganho improdutivo.
As políticas neoliberais estão assoladas por falhas do mercado em todos os lugares. Não apenas os bancos, mas também as corporações encarregadas de entregar os serviços públicos são grandes demais para falir. Como Tony Judt apontou em Ill Fares the Land, Hayek esqueceu-se de que os serviços públicos vitais não podem entrar em colapso, o que significa que a competição não pode determinar seu curso. As empresas levam os lucros, o Estado fica com o risco.
Quanto maior seu fracasso, mais extremada se torna a ideologia. Os governos usam as crises neoliberais tanto como desculpa quanto como oportunidade para baixar impostos, privatizar os serviços públicos restantes, abrir brechas na rede de proteção social, desregular as corporações e re-regular os cidadãos. O Estado que se odeia afunda os dentes em cada órgão do setor público.
Talvez o impacto mais perigoso do neoliberalismo não seja a crise econômica, mas a crise política que causou. Conforme se reduz o domínio do Estado, reduz-se também a possibilidade de mudar o curso de nossas vidas por meio do voto. Ao contrário, assegura a teoria neoliberal, as pessoas podem exercer a escolha pelo consumo. Mas alguns têm mais do que outros para gastar: na grande democracia do consumidor ou do acionista, os votos não são igualmente distribuídos. O resultado é um desempoderamento dos pobres e das classes médiass. Conforme os partidos de direita e a ex-esquerda adotam políticas neoliberais semelhantes, o desempoderamento transforma-se em privação dos direitos civis. Um grande número de pessoas foi varrido da política.
Chris Hedges observa que “movimentos fascistas constroem suas bases não entre as pessoas politicamente ativas, mas entre as politicamente inativas, os ‘perdedores’ que sentem, frequentemente de modo correto, que não têm voz ou papel a desempenhar no establishment politico”. Quando o debate político não faz mais sentido para nós, as pessoas tornam-se suscetíveis a slogans, símbolos e sensações. Para os admiradores de Trump, por exemplo, fatos e argumentos parecem irrelevantes.
Tony Judt explicou que quando a espessa rede de interações entre as pessoas e o Estado é reduzida a nada, a não ser autoridade e obediência, a única força remanescente a nos unir é o poder estatal. O totalitarismo temido por Hayek tem mais probabilidade de emergir quando os governos, tendo perdido a autoridade moral que emana da garantia de serviços públicos, são reduzidos a “persuadir, ameaçar e em última análise coagir as pessoas a obedecê-los.”
Como o comunismo, o neoliberalismo é o Deus que falhou. Mas esta doutrina zumbi continua sua escalada, e uma das razões para isso é o anonimato. Ou antes, um conjunto de anonimatos.
A doutrina invisível da mão invisível é promovida por investidores invisíveis. Devagar, muito devagar, começamos a descobrir o nome de alguns deles. Descobrimos que o Institute of Economic Affairs , que argumentou fortemente na mídia contra a regulação da indústria do tabaco, foi secretamente fundado, em 1963, pela British American Tobacco. Descobrimos que Charles e David Koch, dois dos homens mais ricos do mundo, fundaram o instituto que criou o movimento Tea Party. Descobrimos que Charles Koch, ao instalar um de seus thinktanks, observou que “para evitar críticas indesejáveis, o modo como a organização é controlada e dirigida não deveria ser amplamente divulgada”.
As palavras usadas pelo neoliberalismo com frequência mais ocultam do que elucidam. “O mercado” soa como um sistema natural que pode nos pressionar por igual, como fazem a pressão atmosférica ou da gravidade. Mas está carregado de relações de poder. O que “o mercado quer” tende a significar o que as corporações e seus patrões querem. “Investimento”, como nota Sayer, significa duas coisas bem diferentes. Uma é o financiamento de atividades produtivas e socialmente úteis; a outra é a compra de bens existentes para deles extrair rendas, juros, dividendos e ganhos de capital. Ao usar a mesma palavra para atividades diferentes, “camuflam-se as fontes de riqueza”, levando-nos a confundir extração de riqueza com criação de riqueza.
Há um século, os novos ricos eram desprezados por aqueles que tinham herdado seu dinheiro. Empreendedores buscavam aceitação social transformando-se em rentistas. Hoje, a relação foi invertida: os rentistas e herdeiros definem-se como empresários. Eles afirmam ter construído aq riqueza pela qual não trabalharam.
Esse anonimato e essas confusões se misturam com o fato de o capitalismo moderno não ter nem nome nem lugar. O modelo de terceirizações assegura que os trabalhadores não saibam para quem trabalham. As companhias são registradas através de um sistema secreto de rede de offshores, tão complexo que nem mesmo a polícia pode descobrir seus proprietários e beneficiados. Os arranjos fiscais logram os governos. Ninguém entende os “produtos financeiros”.
O anonimato do neoliberalismo é ferozmente salvaguardado. Aqueles que são influenciados por Hayek, Mises e Friedman tendem a rejeitar o termo, sustentando – com alguma justiça – que ele é hoje usado apenas pejorativamente. Mas não nos oferecem substitutos. Alguns descrevem-se como liberais ou ulta-liberais (libertarians) clássicos, mas essas descrições são ambas enganosas e curiosamente autodissipadoras, uma vez que sugerem não haver nada de novo em O Caminho da Servidão (The Road to Serfdom), Bureocracy ou o clássico trabalho de Friedman, Capitalismo e Liberdade (Capitalism and Freedom).
Por tudo isso, há algo admirável sobre o projeto neoliberal, ao menos em seus estágios iniciais. Era uma filosofia distinta e inovadora, promovida por uma rede coerente de pensadores e ativistas com um claro plano de ação. Era paciente e persistente. O Caminho da Servidão (The Road to Serfdom) tornou-se o caminho para o poder.
O triunfo do neoliberalismo reflete também o fracasso da esquerda. Quando a teoria do laissez-faire econômico levou à catástrofe em 1929, Keynes inventou uma extensa teoria econômica para substituí-la. Quando o gerenciamento da demanda keynesiana bateu no teto, nos anos 70, havia, pronta, uma alternativa conservadora. Mas quando o neoliberalismo desmoronou, em 2008, não havia nada. É por isso que o zumbi anda. Em 80 anos, a esquerda e o centro não produziram um novo sistema geral de pensamento econômico.
Toda invocação de Lord Keynes é uma admissão de fracasso. Propor soluções keynesianas às crises do século 21 é ignorar três problemas óbvios. É difícil mobilizar as pessoas em torno de velhas ideias; as falhas expostas nos anos 1970 não desapareceram; e, mais importante, o projeto não tem nada a dizer sobre nosso problema mais grave: a crise ambiental. O keynesianismo funciona pelo estímulo da demanda de consumo para promover crescimento econômico. Demanda de consumo e crescimento econômico são os motores da destruição ambiental.