terça-feira, 10 de maio de 2016

Ler deveria ser proibido


A pensar fundo na questão, eu diria que ler devia ser proibido.  Afinal de contas, ler faz muito mal às pessoas: acorda os homens para realidades impossíveis, tornando-os incapazes de suportar o mundo insosso e ordinário em que vivem. A leitura induz à loucura, desloca o homem do humilde lugar que lhe fora destinado no corpo social.

Por Guiomar de Grammont*


Não me deixam mentir os exemplos de Don Quixote e Madamme Bovary. O primeiro, coitado, de tanto ler aventuras de cavalheiros que jamais existiram, meteu-se pelo mundo afora, a crer-se capaz de reformar o mundo, quilha de ossos que mal sustinha a si e ao pobre Rocinante. Quanto à pobre Emma Bovary, tomou-se esposa inútil para fofocas e bordados, perdendo-se em delírios sobre bailes e amores cortesãos.

Ler realmente não faz bem. A criança que lê pode se tornar um adulto perigoso, inconformado com os problemas do mundo, induzido a crer que tudo pode ser de outra forma. Afinal de contas, a leitura desenvolve um poder incontrolável. Liberta o homem excessivamente. Sem a leitura, ele morreria feliz, ignorante dos grilhões que o encerram. Sem a leitura, ainda, estaria mais afeito à realidade quotidiana, se dedicaria ao trabalho com afinco, sem procurar enriquecê-la com cabriolas da imaginação.

Sem ler, o homem jamais saberia a extensão do prazer. Não experimentaria nunca o sumo Bem de Aristóteles: o conhecer. Mas para que conhecer se, na maior parte dos casos, o que necessita é apenas executar ordens? Se o que deve, enfim, é fazer o que dele esperam e nada mais?

Ler pode provocar o inesperado. Pode fazer com que o homem crie atalhos para caminhos que devem necessariamente ser longos. Ler pode gerar a invenção. Pode estimular a imaginação de forma a levar o ser humano além do que lhe é devido.

Além disso, os livros estimulam o sonho, a imaginação, a fantasia. Nos transportam a paraísos misteriosos, nos fazem enxergar unicórnios azuis e palácios de cristal. Nos fazem acreditar que a vida é mais do que um punhado de pó em movimento. Que há algo a descobrir. Há horizontes para além das montanhas, há estrelas por trás das nuvens. Estrelas jamais percebidas.

É preciso desconfiar desse pendor para o absurdo que nos impede de aceitar nossas realidades cruas.

Não, não dêem mais livros às escolas. Pais, não leiam para os seus filhos, podem levá-los a desenvolver esse gosto pela aventura e pela descoberta que fez do homem um animal diferente. Antes estivesse ainda a passear de quatro patas, sem noção de progresso e civilização, mas tampouco sem conhecer guerras, destruição, violência. Professores, não contem histórias, podem estimular um curiosidade indesejável em seres que a vida destinou para a repetição e para o trabalho duro.

Ler pode ser um problema, pode gerar seres humanos conscientes demais dos seus direitos políticos, em um mundo administrado, onde ser livre não passa de uma ficção sem nenhuma verossimilhança. Seria impossível controlar e organizar a sociedade se todos os seres humanos soubessem o que desejam. Se todos se pusessem a articular bem suas demandas, a fincar sua posição no mundo, a fazer dos discursos os instrumentos de conquista de sua liberdade.

O mundo já vai por um bom caminho. Cada vez mais as pessoas lêem por razões utilitárias: para compreender formulários, contratos, bulas de remédio, projetos, manuais, etc. Observem as filas, um dos pequenos cancros da civilização contemporânea. Bastaria um livro para que todos se vissem magicamente transportados para outras dimensões, menos incômodas. E esse o tapete mágico, o pó de pirlimpimpim, a máquina do tempo. Para o homem que lê, não há fronteiras, não há cortes, prisões tampouco. O que é mais subversivo do que a leitura?

É preciso compreender que ler para se enriquecer culturalmente ou para se divertir deve ser um privilégio concedido apenas a alguns, jamais àqueles que desenvolvem trabalhos práticos ou manuais. Seja em filas, em metrôs, ou no silêncio da alcova… Ler deve ser coisa rara, não para qualquer um. Afinal de contas, a leitura é um poder, e o poder é para poucos. Para obedecer, não é preciso enxergar, o silêncio é a linguagem da submisso. Para executar ordens, a palavra é inútil.

Alem disso, a leitura promove a comunicação de dores, alegrias, tantos outros sentimentos. A leitura é obscena. Expõe o íntimo, torna coletivo o individual e público, o secreto, o próprio. A leitura ameaça os indivíduos, porque os faz identificar sua história a outras histórias. Torna-os capazes de compreender e aceitar o mundo do Outro. Sim, a leitura devia ser proibida.


Ler pode tornar o homem perigosamente humano.


*Guiomar de Grammont é mineira de Ouro Preto, historiadora, filósofa e escritora. Já publicou contos, antologias, livros sobre historiografia e o romance A casa dos espelhos.







































































































quarta-feira, 4 de maio de 2016

Você é uma pessoa anarquista? A resposta pode te surpreender!

Por David Graeber


É provável que você já tenha ouvido falar sobre quem são xs anarquistas e no que elas/eles supostamente acreditam. Provável que quase tudo o que você tenha ouvido não tenha sentido algum. Muitas pessoas parecem pensar que as pessoas anarquistas são defensores da violência, do caos e da destruição, e que elas se opõem a todas as formas de ordem e organização, que elas são niilistas malucas que apenas querem explodir tudo. Na realidade, nada pode estar mais longe da verdade. Anarquistas são simplesmente pessoas que acreditam que os seres humanos são capazes de comportar-se de uma maneira razoável sem terem que ser forçados a isso. É uma noção bastante simples, na verdade. Mas é a noção que os ricos e poderosos sempre acharam ser a mais perigosa.



Na sua forma mais simples, as crenças anarquistas podem ser resumidas a duas premissas. A primeira é que os seres humanos são, sob circunstâncias normais, tão razoáveis e decentes quanto eles tem a permissão para serem, e daí que eles podem se autogerir e organizar as suas comunidades sem que seja necessário dizer-lhes como. A segunda é que o poder corrompe. Acima de tudo, o anarquismo é apenas uma questão de ter a coragem para tomar os princípios mais simples da decência comum que todos nós vivemos, e segui-las até as suas conclusões lógicas. Por mais estranho que isso pareça, nas mais importantes formas, você provavelmente já é uma/um – você apenas não se tocou disso.
Talvez ajude pegar alguns exemplos da vida cotidiana:
Se há uma fila para pegar um ônibus lotado, você espera a sua vez e evita se acotovelar com os outros mesmo na ausência da polícia?
Se você respondeu que “sim”, então você está acostumado a agir como uma/um anarquista! O princípio anarquista mais básico é a “autogestão”: a premissa de que os seres humanos não precisam ser ameaçados com punição para serem capazes de chegar a entendimentos razoáveis com os outros e tratá-los com dignidade e respeito.
Todas as pessoas acreditam que sejam capazes de comportar-se razoavelmente por elas mesmos. Se elas acham que as leis e a polícia são necessárias, é apenas porque acreditam que as outras pessoas não são capazes. Mas, se você pensar a respeito, as outras pessoas não se sentem da mesma maneira sobre você? Os anarquistas argumentam que quase todo o comportamento anti-social que nos faz crer necessário ter exércitos, polícia, prisões e governos para controlar as nossas vidas é, na verdade, causado pelas injustiças e desigualdades sistemáticas que os mesmos exércitos, polícia, prisões e governos tornam possíveis. É um círculo vicioso. Se as pessoas estão acostumadas a serem tratadas como se as opiniões delas não fossem importantes, elas ficam mais propensas a se tornarem bravas e cínicos, até mesmo violentas – o que, é claro, deixa mais fácil para os poderosos dizerem que as suas opiniões não importam. Uma vez que elas entendem que as suas opiniões importam sim do mesmo jeito que a opinião de qualquer outro, eles tendem a se tornarem extraordinariamente compreensíveis. Para resumir a história: os anarquistas acreditam que para a maior parte das vezes é o poder e os efeitos do poder o que torna as pessoas estúpidas e irresponsáveis.
Você é membro de um clube de esportes ou qualquer outra organização voluntária onde as decisões não são impostas por um líder mas feitas baseadas no consentimento geral?
Se você respondeu que sim, então você pertence a uma organização que trabalha com princípios anarquistas! Outro princípio anarquista básico é a “associação voluntária”. É apenas uma questão de aplicar princípios democráticas na vida cotidiana. A única diferença é que as pessoas anarquistas acreditam que deva ser necessário criar uma sociedade na qual tudo possa ser organizado seguindo essas linhas, todos os grupos baseados no livre consentimento de seus membros, e então, que todos os tipos de organização, seja militares, burocráticas ou grandes corporações, baseadas em cadeias de comando, não seriam mais necessários. Talvez você não acredite que isso seja possível. Talvez sim. Mas toda vez que você chega a um acordo pelo consenso ao invés de ameaças, toda vez que você faz um acordo voluntário com outras pessoas, chega a um entendimento, ou alcança um compromisso tomando a devida consideração das necessidades e da situação particular do outro, você está sendo uma/um anarquista – mesmo se não tenha percebido isso.
O anarquismo é apenas a maneira que as pessoas agem quando elas são livres para fazer do jeito que elas escolheram, e quando elas lidam com os outros que são igualmente livres –  e, portanto, estão conscientes da responsabilidade para com os outros que isso acarreta. Isto nos leva a outro ponto crucial: que enquanto as pessoas possam ser razoáveis e compreensivas quando elas estão lidando com iguais, a natureza humana é tal qual que elas não podem adquirir confiança para isso quando recebem um poder sobre os outros. Dê a alguém tal poder, e esse alguém quase invariavelmente irá abusar dele de um jeito ou de outro.
Você acredita que a maioria dos políticos são egoístas e que não se importam em nada com o interesse público? Você pensa que nós vivemos em um sistema econômico que é estúpido e injusto?
Se você respondeu que sim, então você assinou a crítica anarquista da sociedade atual – no mínimo, nas suas linhas mais gerais. As pessoas anarquistas acreditam que o poder corrompe e que aqueles que gastam as suas vidas inteiras procurando poder são as últimas pessoas que deveriam tê-lo. Anarquistas acreditam que nosso presente sistema econômico está mais propenso a recompensar as pessoas pelo seu comportamento egoísta e inescrupuloso que por serem seres humanos decentes e responsáveis. A maioria das pessoas se sente assim. A única diferença é que a maioria das pessoas não acha que alguma coisa possa ser feita a respeito, ou de qualquer maneira – e isso é o que os servos fiéis dos poderosos estão sempre insistindo – qualquer coisa terminaria por deixar as coisas ainda piores.
Mas e se isso não for verdade?
Existe uma razão real pra acreditar nisso? Quando você pode fazer um teste, a maioria das atuais predições sobre o que aconteceria sem estados ou capitalismo terminam por não terem sentido algum. Por milhares de anos as pessoas viveram sem governos. Em muitas partes do mundo, as pessoas vivem fora do controle dos governos até hoje. Elas não matam umas às outras. Na maioria das vezes elas apenas levam as suas vidas da mesma maneira que qualquer pessoa a levaria. É claro, em uma sociedade complexa, urbana e tecnológica existem muito mais necessidades a serem organizadas: mas a tecnologia pode também facilitar a solução de alguns desses problemas. Na verdade, nós nem começamos a pensar como seriam as nossas vidas se a tecnologia estivesse realmente moldada a serviço das necessidades humanas. Quantas horas seriam necessárias realmente para trabalhar com o objetivo de manter a sociedade funcional – isto é, se nos livrássemos de todas as ocupações inúteis e destrutivas como telemarketing, advogados, carcereiros, analistas financeiros, experts em relações públicas, burocratas e políticos, e afastar as nossas melhores mentes científicas do arsenal espacial ou dos sistemas da bolsa de valores para mecanizar as tarefas perigosas ou desagradáveis como extração de carvão ou limpeza dos banheiros, e distribuir o trabalho restante entre todos igualmente? Cinco horas por dia? Quatro? Três? Duas? Ninguém sabe porque ninguém nem começou a fazer esse tipo de pergunta. Os anarquistas acham que essas são as perguntas que nós devemos começar a perguntar.
Você realmente acredita naquelas coisas que diz para as suas crianças (ou que seus pais te contaram)?
“Não importa quem começou”. “Duas coisas erradas não fazem uma certa”. “Limpe a sua própria sujeira”. “Pense no próximo…” “Não seja mau com as pessoas apenas porque elas são diferentes”. Talvez devêssemos decidir se estamos mentindo para as nossas crianças quando lhes falamos sobre o certo e o errado, ou se estamos com vontade de tomar as nossas próprias premissas seriamente. Porque se você tomar esses princípios morais às suas conclusões lógicas, você chega no anarquismo.
Tome o princípio de que duas coisas erradas não fazem uma certa. Se você levar isso a sério, só isso poderia derrubar quase a base inteira para a guerra e para o sistema de justiça penal. O mesmo serve para o compartilhar: nós sempre estamos dizendo às nossas crianças para aprenderem a compartilhar, para serem compreensíveis com as necessidades alheias, para ajudarem umas às outras; para depois sair para o mundo real onde nós assumimos que todos são naturalmente egoístas e competitivos. Mas uma pessoa anarquista apontaria: na verdade, o que dizemos às nossas crianças é certo. Quase toda façanha na história humana, toda descoberta ou acontecimento que melhorou a vida das pessoas, foi conseguido através da cooperação e da ajuda mútua; mesmo agora, a maioria de nós gasta a maior parte do nosso dinheiro em nossos amigos, amigas e famílias do que em nós mesmos; enquanto não existam dúvidas sobre se sempre existirão pessoas competitivas no mundo, não existe razão para que uma sociedade tenha que ser baseada em encorajar tal comportamento, deixando as pessoas sozinhas para competirem sobre as necessidades básicas da vida. Uma sociedade que encoraja a competição apenas serve aos interesses das pessoas no poder, que querem que vivamos com medo um do outro. É por isso que anarquistas conclamam uma sociedade baseada não apenas na livre associação mas também na ajuda mútua.


Anarquismo
O fato é que a maioiria das crianças cresce acreditando em uma moralidade anarquista e, então, gradualmente tem que perceber que o mundo adulto não funciona dessa maneira. É por isso que tantas se tornam rebeldes, ou alienadas, mesmo suicidas como adolescentes, e finalmente, resignadas e amarguradas como adultos; o seu único apoio, frequentemente, sendo a capacidade de criar crianças suas e fingir que o mundo é justo. Mas e se nós pudéssemos começar a construir um mundo o qual fosse realmente fundado nos princípios da justiça? Esse não seria o melhor presente que alguém pudesse dar às suas crianças?
Você acredita que os seres humanos são fundamentalmente corruptos e maus, ou que certos tipos de pessoas (mulheres, pessoas de cor, gente comum que não é rica ou altamente educada) são espécimes inferiores, destinados a serem governados pelos melhores?
Se você respondeu que “sim”, então, bom, parece que você não é um anarquista depois de tudo. Mas, se você respondeu “não”, então existem chances de que você tenha assinado 90% dos princípios anarquistas e, querendo ou não, está vivendo a sua vida de acordo com eles. Toda vez que tratar um ser humano com consideração e respeito, você está sendo anarquista. Toda vez que você trabalha as suas diferenças com os outros chegando a um compromisso razoável, ouvindo o que os outros tem a dizer ao invés de deixar uma pessoa decidir por todos, você está sendo anarquista. Toda vez que você tem a oportunidade de forçar a alguém a fazer alguma coisa, mas decide apelar ao seu senso de razão e justiça, você está sendo anarquista. O mesmo vale para toda vez que você compartilha alguma coisa com uma pessoa amiga, ou decide quem vai lavar a louça, ou faz qualquer coisa com um olhar na justiça.
Agora, você pode objetar que isso é tudo muito bom como maneira para pequenos grupos se comportarem uns com os outros, mas gerir uma cidade ou um país é uma coisa completamente diferente. É claro, isso não é falso. Mesmo se você descentralizasse uma sociedade e desse a maior quantidade de poder possível às pequenas comunidades, ainda existiriam muitas coisas que precisariam ser coordenadas, desde trilhos de trem até decisões sobre as direções para pesquisa médica. Porém, apenas porque alguma coisa é complicada isso não significa que não possa ser feita. Apenas significa que será mais difícil. Na verdade, as pessoas anarquistas tem todos os tipos de ideias sobre como uma sociedade saudável e democrática poderia se autogerir. Para explicar isso, levaria bem mais do que um pequeno texto introdutório como este; de qualquer forma, nenhuma pessoa anarquista diz ter um plano perfeito. A verdade é que nós provavelmente não podemos imaginar a metade dos problemas que viriam à tona uma vez que tentássemos criar uma sociedade verdadeiramente democrática; mesmo assim, estamos confiantes de que, a ingenuidade humana sendo como é, tais problemas poderiam ser resolvidos. Ou: que eles podem ser resolvidos até que mantenhamos em espírito os nossos princípios básicos – os quais são, em análise final, simplesmente os princípios da decência humana fundamental.
David Graeber é anarquista, antropólogo e professor de antropologia social na Universidade de Londres. Tradução por Rede de Informações Anarquistas.