quarta-feira, 30 de janeiro de 2019

Como explicar a ascensão dos humanos?


Por Yuval Noah Harari 




Há 70 mil anos, nossos ancestrais eram animais insignificantes. A coisa mais importante a saber sobre os humanos pré-históricos é que eles não tinham importância. O impacto deles no mundo não foi muito maior do que o das águas-vivas, dos vaga-lumes ou pica-paus. Hoje, em contraste, nós controlamos esse planeta. E a questão é: como viemos de lá até aqui? Como nos transformamos de primatas insignificantes, que cuidavam das suas vidinhas em algum canto na África, em soberanos do planeta Terra?

Normalmente, procuramos a diferença entre nós e todos os outros animais em um âmbito individual. Nós queremos acreditar, eu quero acreditar, que há algo de especial a meu respeito, sobre meu corpo e meu cérebro, que faz de mim superior a um cão, um porco ou um chimpanzé. Mas a verdade é que, no âmbito individual, sou vergonhosamente semelhante a um chimpanzé. E se eu e um chimpanzé fôssemos colocados juntos em alguma ilha deserta, e tivéssemos que lutar pela sobrevivência para ver quem se sairia melhor, eu definitivamente apostaria no chimpanzé, não em mim. Não que haja algo de errado comigo em particular. Acho que se quase qualquer um de vocês fosse deixado sozinho com um chimpanzé em alguma ilha, o chimpanzé se sairia muito melhor.

A verdadeira diferença entre seres humanos e outros animais não está no âmbito individual, e sim no âmbito coletivo. Seres humanos controlam o planeta porque são os únicos animais que podem cooperar com flexibilidade e em grandes grupos. Existem outros animais, como os insetos sociais: as abelhas, as formigas... que podem cooperar em grandes grupos, mas não o fazem com flexibilidade. A cooperação entre eles é muito rígida. Basicamente, existe apenas um modo no qual uma colmeia pode funcionar. E se existe uma nova oportunidade ou um novo perigo, as abelhas não podem reinventar um sistema social da noite para o dia. Elas não podem, por exemplo, executar a rainha e estabelecer uma república de abelhas, ou uma ditadura comunista de abelhas operárias.

Outros animais, como os mamíferos sociais: os lobos, os elefantes, os golfinhos, os chimpanzés... podem cooperar de modo bem mais flexível, mas o fazem apenas em pequenos grupos, porque a cooperação entre chimpanzés é baseada no conhecimento íntimo mútuo. Se eu sou um chimpanzé e você é um chimpanzé, eu quero cooperar com você. Eu preciso conhecer você pessoalmente. Que tipo de chimpanzé você é? Você é um chimpanzé amigável? É um chimpanzé diabólico? É confiável? Se não conheço você, como posso cooperar contigo?

O único animal que pode combinar as duas habilidades e cooperar com flexibilidade e ainda fazê-lo em grandes grupos somos nós, Homo sapiens. Um contra um, ou mesmo dez contra dez, os chimpanzés podem se sair melhor do que nós. Mas, se confrontarmos mil seres humanos com mil chimpanzés, os humanos ganharão facilmente pela simples razão de que mil chimpanzés não conseguem cooperar de modo algum. E se tentarmos abarrotar 100 mil chimpanzés na Rua Oxford ou no Estádio Wembley, ou na Praça da Paz Celestial ou no Vaticano, teremos um caos total. Imaginem o Estádio Wembley com 100 mil chimpanzés. Seria loucura total.

Em contraste, os humanos normalmente se reúnem lá aos milhares, e o que temos não é o caos, normalmente. O que temos são redes de cooperação extremamente sofisticadas e eficientes. Todas as enormes conquistas da humanidade por toda a história, seja a construção das pirâmides ou a viagem até a Lua, foram baseadas não em habilidades individuais, mas na habilidade de cooperar maleavelmente em grandes grupos.

Pensem até nessa palestra que estou dando: estou em frente a uma plateia de cerca de 300 a 400 pessoas, a maioria de vocês, totalmente estranhos para mim. Do mesmo modo, não conheço todas as pessoas que organizaram e trabalharam nesse evento. Não conheço o piloto e a tripulação do voo que me trouxe aqui ontem, até Londres. Não conheço as pessoas que inventaram e fabricaram esse microfone e essas câmeras, que estão gravando o que estou dizendo. Não conheço as pessoas que escreveram todos os livros e artigos que li ao me preparar para esta palestra. E certamente não conheço todas as pessoas que podem estar assistindo a essa palestra pela Internet, em algum lugar de Buenos Aires ou Nova Déli.

Mesmo assim, apesar de não nos conhecermos, podemos trabalhar juntos para criar esta troca de ideias global. Isto é algo que chimpanzés não conseguem fazer. Eles se comunicam, é claro, mas jamais veremos um chimpanzé viajando para um bando de semelhantes distante para dar uma palestra sobre bananas ou elefantes, ou qualquer outra coisa que possa interessar os chimpanzés. Agora, cooperação não é, naturalmente, sempre agradável; e as coisas horrorosas que os humanos têm feito ao longo da história, e temos feito coisas muito horríveis, todas essas coisas são também baseadas na cooperação em grande escala. Prisões são sistemas de cooperação; matadouros são sistemas de cooperação; assim como os campos de concentração. Chimpanzés não têm matadouros, nem prisões, nem campos de concentração.

Suponhamos que eu tenha convencido vocês talvez de que sim, controlamos o mundo porque cooperamos com flexibilidade em grandes grupos. A próxima questão que vem logo à mente de um ouvinte curioso é: "Como, exatamente, fazemos isso?" O que permite apenas a nós, entre todos os animais, cooperar dessa maneira? A resposta é a nossa imaginação. Nós podemos cooperar com flexibilidade com inúmeros grupos de estranhos, pois apenas nós, entre todos os animais do planeta, podemos criar e acreditar em ficções, histórias fictícias. E desde que todos acreditem na mesma ficção, que todos obedeçam e sigam as mesmas regras, as mesmas normas e os mesmos valores.

Todos os outros animais usam seu sistema de comunicação apenas para descrever a realidade. Um chimpanzé pode dizer: "Olha, lá vem um leão. Vamos fugir! Ou: "Olha, tem uma bananeira ali. Vamos pegar bananas!" Humanos, em contraste, usam sua linguagem não apenas para descrever a realidade, mas também para criar novas realidades, realidades fictícias. Um humano pode dizer: "Vejam, há um Deus acima das nuvens! E se vocês não fizerem o que eu mandar, quando morrerem, Deus vai puni-los e mandá-los para o inferno". E se todos acreditarem nessa história que eu inventei, vocês então seguirão as mesmas normas, leis e valores, e vocês podem cooperar. Isso é algo que apenas os humanos podem fazer. Não se pode convencer um chimpanzé a dar uma banana a você prometendo: "... depois que você morrer, irá para o paraíso dos chimpanzés...! "... e receberá uma infinidade de bananas pelas suas boas ações. Agora, me dê esta banana". Nenhum chimpanzé jamais acreditaria numa história dessas. Só os humanos acreditam nessas histórias, e é por isso que controlamos o mundo, enquanto que chimpanzés estão presos em zoológicos e laboratórios de pesquisa.

Vocês podem achar aceitável que sim, no âmbito religioso, humanos cooperam acreditando nas mesmas ficções. Milhões de pessoas se reúnem para construir uma catedral ou mesquita, ou lutar numa cruzada ou jiade, pois todos acreditam nas mesmas histórias sobre Deus, paraíso e inferno. Mas o que quero enfatizar é que exatamente o mesmo mecanismo fundamenta todas as outras formas de cooperação humana em grande escala, não apenas no âmbito religioso.

Observemos, por exemplo, o âmbito jurídico. Muitos sistemas legais hoje no mundo são baseados numa crença dos direitos humanos. Mas o que são os direitos humanos? Direitos humanos, assim como Deus e o paraíso, são histórias que inventamos. Eles não são uma realidade objetiva; não são um efeito biológico sobre o homo sapiens. Pegue um ser humano, corte-o, observe seu interior: você encontrará o coração, os rins, neurônios, hormônios, DNA, mas não encontrará direitos. Apenas encontrará direitos nas histórias que inventamos e espalhamos ao longo desses últimos séculos. Elas podem ser histórias bem positivas e boas, mas serão sempre histórias fictícias que nós inventamos.

O mesmo se aplica ao âmbito político. Os fatores mais importantes na política moderna são estados e nações. Mas o que são estados e nações? Eles não são uma realidade objetiva. Uma montanha é uma realidade objetiva. Podemos vê-la, tocá-la, até mesmo sentir seu aroma. Mas uma nação ou um Estado, como Israel ou Irã, França ou Alemanha, são apenas uma história que inventamos e à qual ficamos extremamente apegados.

O mesmo se aplica ao âmbito econômico. Os principais protagonistas na economia global atual são companhias e corporações. Muitos de vocês hoje, talvez, trabalham para uma corporação, como Google, Toyota ou McDonald's. O que exatamente são essas coisas? São o que advogados chamam de ficções jurídicas. Elas são histórias inventadas e mantidas pelos poderosos peritos que chamamos de advogados. E o que corporações fazem o dia todo? Em geral, elas tentam ganhar dinheiro. E o que é o dinheiro? De novo, dinheiro não é uma realidade objetiva; não tem valor objetivo. Observemos o pedaço de papel verde, a cédula do dólar. Olhem para ela, não há valor algum. Não se pode comê-la, bebê-la, não se pode vesti-la. Mas aí surgiram esses mestres contadores de histórias: os grandes banqueiros, os ministros das finanças, os primeiros-ministros, e eles nos contam uma história bem convincente: "Estão vendo esse pedaço de papel verde? Ele, na verdade, vale dez bananas". E se eu e vocês acreditarmos nisso, se todo mundo acreditar, isso funciona! Posso pegar esse inútil pedaço de papel, ir ao supermercado, entregá-lo a um estranho que eu jamais vi antes, e obter, em troca, bananas de verdade que posso comer. Isso é algo incrível! Jamais poderia ser feito com chimpanzés. Chimpanzés comercializam, é claro: "Sim, você me dá um coco, eu lhe darei uma banana". Isso pode funcionar. Mas, você me dá um pedaço de papel inútil e espera que eu lhe dê uma banana? Nem pensar! O que pensa que sou, um humano?

Dinheiro, na verdade, é a história mais bem-sucedida já inventada e contada aos humanos, pois é a única história em que todos acreditam. Nem todo mundo acredita em Deus, nem todo mundo acredita em direitos humanos, ou no nacionalismo, mas todo mundo acredita no dinheiro, e nas cédulas do dólar. Até mesmo o Osama Bin Laden. Ele odiava a política, a religião americana e a cultura americana, mas ele não fazia nenhuma objeção aos dólares americanos. Ele gostava muito deles, na verdade.

Para concluir, então: nós humanos controlamos o mundo porque vivemos em uma realidade dupla. Todos os outros animais vivem em uma realidade objetiva. A realidade deles consiste em entidades objetivas, como rios, árvores, leões e elefantes. Nós humanos também vivemos em uma realidade objetiva. No nosso mundo, também, existem rios, árvores, leões e elefantes. Mas ao longo dos séculos, construímos em cima dessa realidade objetiva uma segunda camada de realidade fictícia, uma realidade feita de entidades fictícias, como nações, deuses, dinheiro e corporações. E o incrível é que, enquanto a história se desenvolvia, essa realidade fictícia tornou-se cada vez mais poderosa tanto que hoje, as forças mais poderosas do mundo são essas entidades fictícias. Hoje, a sobrevivência dos rios, árvores, leões e elefantes depende das decisões e desejos de entidades fictícias, como os Estados Unidos, o Google, o Banco Mundial... entidades que existem apenas na nossa imaginação.



sábado, 26 de janeiro de 2019

O caráter da repressão, segundo Antônio Cândido

Por Antônio Cândido (texto publicado em “Opinião”, em janeiro de 1972)
Balzac, que percebeu tanta coisa, percebeu também qual era o papel que a polícia estava começando a desempenhar no mundo contemporâneo. Fouché a tinha transformado num instrumento preciso e onipotente, necessário para manter a ditadura de Napoleão. Mas criando dentro da ditadura um mundo paralelo, que se torna fator determinante e não apenas elemento determinado.
O romancista tinha mais ou menos dezesseis anos quando Napoleão caiu, e assim pôde ver como a polícia organizada por Fouché adquirira por acréscimo (numa espécie de desenvolvimento natural das funções) o seu grande papel no mundo burguês e constitucional que então se abria: disfarçar o arbítrio da vontade dos dirigentes por meio da simulação de legalidade.
A polícia de um soberano absoluto é ostensiva e brutal, porque o soberano absoluto não se preocupa em justificar demais os seus atos. Mas a de um Estado constitucional tem de ser mais hermética e requintada. Por isso, vai-se misturando organicamente com o resto da sociedade, pondo em prática um modelo que se poderia chamar de “veneziano” — ou seja, o que estabelece uma rede sutil de espionagem e de delação irresponsável (cobertas pelo anonimato) como alicerce do Estado.
Para este fim, criam-se por toda a parte vínculos íntimos e profundos. A polícia se disfarça e assume uma organização dupla, bifurcando-se numa parte visível (com os seus distintivos e as suas siglas) e numa parte secreta, com o seu exército impressentido de espiões e alcaguetes, que em geral aparecem como exercendo ostensivamente uma outra atividade. Este funcionamento duplo permite satisfazer também a um requisito intransigente da burguesia, dominante desde os tempos de Balzac, e dispensado só nos casos de salvação da classe: a tarefa policial deve ser executada implacavelmente, mas sem ferir demais a sensibilidade dos bem-postos na vida. Para isso, é preciso esconder tanto quanto possível os aspectos mais desagradáveis da investigação e da repressão.
Para obter esse resultado, a sociedade suscita milhares de indivíduos de alma convenientemente deformada. Assim como os “comprachicos” d’O Homem que Ri, de Victor Hugo, estropiavam fisicamente as crianças a fim de obterem aleijões para divertimento dos outros, a sociedade puxa para fora daqueles indivíduos a brutalidade, a privação, a frustração, a torpeza, a tara — e os remete à função repressora.
Daí o interesse da literatura pela polícia, desde que Balzac viu a solidariedade orgânica entre ela e a sociedade, o poder dos seus setores ocultos e o aproveitamento do marginal, do degenerado, para o fortalecimento da ordem. Nos seus livros há um momento onde o transgressor não se distingue do repressor, mesmo porque este pode ter sido antes um transgressor, como é o caso de Vautrin, ao mesmo tempo o seu maior criminoso e o seu maior policial.
Dostoievski percebeu uma coisa mais sutil: a função simbólica do policial como sucedâneo possível da consciência — a sociedade entrando na casa de cada um através da pressão ou do desvendamento que ele efetua. Em Crime e Castigo, o juiz de instrução Porfírio Porfiriovitch vai-se tornando para Raskolnikof uma espécie de desdobramento dele mesmo.
Mas foi Kafka n’O Processo, quem viu o aspecto por assim dizer essencial e ao mesmo tempo profundamente social. Viu a polícia como algo inseparável da justiça, e esta assumindo cada vez mais um aspecto de polícia. Viu de que maneira a função de reprimir (mostrada por Balzac como função normal da sociedade) adquire um sentido transcendente, ao ponto de acabar se tornando a sua própria finalidade. Quando isso ocorre, ela desvenda aspectos básicos do homem, repressor e reprimido.
Para entrar em funcionamento, a polícia-justiça de Kafka não tem necessidade de motivos, mas apenas de estímulos. E uma vez em funcionamento não pode mais parar, porque a sua finalidade é ela própria. Para isso, não hesita em tirar qualquer homem do seu trilho até liquidá-lo de todo, física ou moralmente. Não hesita em pô-lo (seja por que meio for) à margem da ação, ou da suspeita de ação, ou da vaga possibilidade de ação que o Estado quer reprimir, sem se importar se o indivíduo visado está envolvido nela. Em face da importância ganha pelo processo punitivo (que acaba tendo o alvo espúrio de funcionar, pura e simplesmente, mesmo sem motivo), a materialidade da culpa perde sentido.
A polícia aparece então como um agente que viola a personalidade, roubando ao homem os precários recursos de equilíbrio de que usualmente dispõe: pudor, controle emocional, lealdade, discrição — dissolvidos com perícia ou brutalidade profissionais. Operando como poderosa força redutora, ela traz à superfície tudo o que tínhamos conseguido reprimir, e transforma o pudor em impudor, o controle em desmando, a lealdade em delação, a discrição em bisbilhotice trágica.
Daí uma espécie de monstruosa verdade suscitada pela polícia. Verdade oculta de um ser que ia penosamente se apresentando como outro, que de fato era outro, na medida em que não era obrigado a recair nas suas profundidades abissais. Aliás, seria mais correto dizer que o outro é o suscitado pela polícia. O outro, com a sua verdade imposta ou desentranhada pelo processo repressor, extraída, contra a vontade, dos porões onde tinha sido mais ou menos trancada.
De fato, a polícia tem necessidade de construir a verdade do outro para poder manipular o eu do seu paciente. A sua força consiste em opor o outro ao eu, até que este seja absorvido por aquele e, deste modo, esteja pronto para o que se espera dele: colaboração, submissão, omissão, silêncio. A polícia esculpe o outro por meio do interrogatório, o vasculhamento do passado, a exposição da fraqueza, a violência física e moral. No fim, se for preciso, poderá inclusive empregar a seu serviço este outro, que é um novo eu, manipulado pela dosagem de um ingrediente da mais alta eficácia: o medo — em todos os seus graus e modalidades.
* * *
Um exemplo dessa redução degradante é o comportamento do delegado com o encanador, no filme Inquérito sobre um cidadão acima de qualquer suspeita, de Elio Petri.
O delegado, que é também o criminoso, resolve brincar com o destino e como que provar o mecanismo autodominante da polícia, a sua finalidade em si mesma. Para isso, dirige-se a um transeunte qualquer, escolhido ao acaso, e confessa que é o matador procurado, dando como prova a gravata azul celeste que usa e fora vista nele. Convence então o pobre transeunte a ir à polícia e relatar o fato, dando-lhe para levar como indício (e evidentemente como baralhamento do indício) diversas gravatas iguais, que mostrariam como era a do assassino.
Chegado à polícia, o transeunte, que é encanador, dá de cara com o assassino que se confessara na rua, e que ia delatar; mas que agora está no seu papel de delegado. Este o interroga com brutalidade e o pressiona física e moralmente para dizer quem era o assassino que se desvendara a ele na rua. Mas o pobre diabo, completamente desorganizado pela contradição inexplicável, não tem coragem para tanto. Com isso, vai ficando suspeito, vai-se caracterizando legalmente corno possível criminoso, até desaparecer dos nossos olhos, trôpego, arrasado, por uns corredores sujos que levam aonde bem suspeitamos.
A força que o paralisa, e que nos paralisaria eventualmente, vem de uma ambiguidade, misteriosa na aparência, mas eficaz, cuja natureza foi sugerida acima: o repressor e o transgressor são o mesmo, não apenas fisicamente e do ponto de vista dos papéis sociais, mas ontologicamente (o outro é o eu).
Tudo nesse episódio é modelar: a gratuidade com que se escolhe o culpado; a imposição de um comportamento não intencional (ir à polícia com as gravatas azuis no braço, delatar um criminoso sem nome, que não interessa); o baralhamento da verdade, quando ele constata que o homem que se denunciara como assassino é também o delegado; a transformação do inocente em suspeito e do suspeito em delinquente, aceita pelo próprio inocente, do fundo da sua desorganização mental, forjada pela inquirição.
O fulcro desse processo talvez seja aquele momento do interrogatório em que o delegado pergunta ao pobre diabo, já zonzo, qual é a sua profissão.
“— Sou hidráulico”, responde ele.
O delegado esbraveja:
” — Qual hidráulico qual nada! Agora toda a gente quer ser alguma coisa bonita! O que você é é encanador, não é? En-ca-na-dor! Por que hi-dráu-li-co?!”.
E o desgraçado, já sem fôlego nem prumo: “— Sim, sou encanador”’. (Cito de memória porque não tenho o roteiro.)
Vê-se que o pobre homem, a exemplo de toda a sua categoria profissional, tinha adotado uma designação de cunho técnico (idraulico, em italiano), que o afasta da velha designação artesanal “encanador” (stagnaro, em italiano), e assim lhe dá a ilusão de um nível aparentemente mais elevado, ou pelo menos mais científico e atualizado. Mas o policial o reduz ao nível anterior, desmascara a sua autopromoção, lira para fora a sua verdade indesejada. E, no fim, é como se ele dissesse:
” — Sim, confesso, não sou um técnico de nome sonoro, que evoca inocentemente alguma coisa de engenharia; sou mesmo um pobre diabo, um encanador. Estou reduzido ao meu verdadeiro eu, libertado do outro” .
Mas, na verdade, foi a polícia que lhe impôs o outro como eu. A polícia efetuou um desmantelamento da personalidade, arduamente construída, e trouxe de volta o que o homem tinha superado. Sinistra mentalidade redutora, que nos obriga a ser, ou voltar a ser, o que não queremos ser; e que mostra como Alfred de Vigny tinha razão, quando anotou seu diário:
“Não tenha medo da pobreza, nem do exílio, nem da prisão, nem da morte. Mas tenha medo do medo”.

Fonte: Outras Palavras