domingo, 17 de dezembro de 2017

A “reconquista do território”, ou: Um novo capítulo na militarização da questão urbana

Qual seria o significado das UPPs, no contexto da geopolítica urbana em curso, e que envolve diferentes aspectos?  
Por Marcelo Lopes de Souza [*]

A geopolítica urbana da “guerra ao tráfico”

A partir da desterritorialização dos traficantes de drogas de varejo [venda a retalho] da favela da Vila Cruzeiro (25 de novembro de 2010) e do Complexo de Favelas do Alemão (três dias depois), na Zona Norte do Rio de Janeiro, a expressão “reconquista do território” e outras equivalentes passou a ser fartamente utilizada por diferentes agentes do Estado. Nos dias imediatamente subsequentes àquele que o jornal O Globo denominou de “O Dia D da guerra ao tráfico”, a grande imprensa escrita, falada e televisionada ficou saturada de alusões à “estratégia territorial” adotada pela Secretaria de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro, à importância da retomada do “controle territorial” por parte do aparelho de Estado e ao revés sofrido pelos traficantes ao terem perdido alguns de seus mais importantes (pela importância logística) territórios.

Muito embora mapas tenham sido já publicados muitas outras vezes em circunstâncias parecidas – por exemplo, mapas com informações, não raro de fidedignidade mais que duvidosa, sobre o número de traficantes armados em cada grande favela da cidade -, jamais se viu antes, nos grandes jornais (em especial n’O Globo e na Folha de São Paulo), tamanha profusão de mapas: alguns apenas com a localização dos “territórios a serem reconquistados” pelo Estado, outros com um acompanhamento da geografia do avanço das “forças da ordem”, e assim segue.

As metáforas bélicas, também, passaram a ser ainda mais abundantemente empregadas. “A Guerra do Rio” é uma expressão consolidada já há anos no jornal O Globo, e a Folha de São Paulo, O Estado de São Paulo e vários outros grandes jornais não ficam muito atrás. “Guerra”, “batalha”, “soldados do tráfico” e outras expressões, hoje já até corriqueiras, passaram a conviver com outras, mais desabridas, entre as quais se destaca o “Dia D”. Ironia das ironias: o complexo de favelas que, a partir do “Dia D”, se buscava “reconquistar”, se chama, precisamente, Complexo do Alemão. À diferença da Normandia ocupada pelas tropas do Terceiro Reich, contudo, os “inimigos”, agora, são pessoas nascidas no mesmo país que os “libertadores” (“libertação”, aliás, tem sido outra expressão muito empregada); na sua esmagadora maioria, esses “inimigos” são jovens negros e mulatos, muitas vezes franzinos, armados com enormes fuzis mas calçados com chinelos de borracha. A juventude pobre dos espaços segregados é, em última análise, o grande “inimigo” a se temer, real ou potencialmente, no imaginário das elites e da classe média.

O uso das metáforas bélicas, que já vem dos anos 80 e se intensificou na década seguinte – em especial depois da “Operação Rio (I)”, em 1994, a segunda e um dos hoje já numerosos episódios de emprego das Forças Armadas no combate à criminalidade quotidiana -, foi, agora, ainda mais estimulado pelo emprego mais decidido (e mais coordenado com o uso das forças policiais) das tropas federais, em ocasiões anteriores: blindados de diversos tipos dos fuzileiros navais, blindados do Exército, oitocentos homens da Brigada Paraquedista, helicópteros blindados da Força Aérea… Como se pode ver pelos jornais publicados nos últimos dias de novembro, o uso das metáforas guerreiras foi, também, complementado pela divulgação de ilustrações vistosas dos blindados e dos helicópteros utilizados. As comparações, constantemente feitas, entre o “arsenal” dos criminosos e o armamento das Forças Armadas, assim como entre o número estimado de “soldados do tráfico” e o efetivo das forças conjuntas a serviço do Estado, tinham um subtexto que, na boca de alguns comandantes militares (como o Comandante do Batalhão de Operações Especiais, o famigerado BOPE da polícia fluminense, celebrizado pelos filmes “Tropa de Elite” e “Tropa de Elite 2”), às vezes foi explicitado: os traficantes não têm nenhuma chance, que se rendam enquanto é tempo. Uma pergunta que praticamente não se fez: o fato de, durante décadas, eles terem “desafiado” o Estado, como gosta de se expressar a grande imprensa, não teve algo a ver com a corrupção e, para além disso, com a própria lógica do Estado (e do capitalismo)?… Mais uma vez, deixou-se na sombra o tema das viscerais articulações entre o legal e o ilegal, a “ordem” e a “desordem”.

“A comunidade hoje pertence ao Estado”…

A frase acima foi empregada, no dia seguinte à “reconquista” da Vila Cruzeiro, pelo subchefe operacional da Polícia Civil do Rio de Janeiro, delegado Rodrigo Oliveira, e variantes dela foram utilizadas também pelo governador Sérgio Cabral Filho e por outras “autoridades”. Que seja do meu conhecimento, nenhum dos especialistas (com ou sem aspas) em segurança pública que desfilaram, em sucessão frenética, naqueles dias de fins de novembro, pelas telas de televisão ou pelas páginas dos jornais, lembrou-se de observar o profundo significado simbólico dessas palavras.

De fato, a “comunidade” nunca se “pertenceu”. Embora largamente desassistida e, obviamente, bastante estigmatizada pela classe média e pelo próprio Estado e pela grande imprensa, a tutela estatal, exercida de modo que em geral mesclava (ou alternava) a brutalidade (arbitrariedades da polícia) e o clientelismo mais rasteiro, não deixou de se fazer presente. Apesar de serem as favelas largamente desassistidas em matéria de provimento de serviços básicos e infraestrutura técnica e social, uma frase como “o Estado sempre esteve ausente [das favelas]” é retórica e politicamente compreensível, mas, em última instância, pouco rigorosa: seja pelas incursões da polícia, seja por meio das malhas do clientelismo, o Estado sempre lançou os seus tentáculos sobre os espaços segregados. Por outro lado, cada vez mais, ao longo dos anos 80, mas mais ainda a partir da década de 90, essa tutela passou a ser disputada e teve de se arranjar com a tutela exercida pelos chefetes microlocais do tráfico de varejo – representantes miúdos do capitalismo criminal-informal.

No decorrer das décadas, os traficantes de varejo, regularmente extorquidos por policiais, passaram a se arranjar com os agentes do Estado também de várias outras maneiras, em uma promiscuidade que se tornou regra geral: intermediação entre políticos (ou candidatos) e as “comunidades”, em época de eleição ou não; interferências menos ou mais “toleradas”, “negociadas” quotidianamente, junto a programas governamentais, como o Favela-Bairro (urbanização), com a finalidade de evitar intervenções que pudessem causar estorvos à segurança ou aos negócios dos traficantes; e por aí vai. Não chegaram, contudo, ao ponto de se organizarem para eleger seus próprios representantes junto às câmaras de vereadores ou à Assembleia Legislativa. Isso ficou para as “milícias”, esquadrões da morte formados por (ex-)policiais e (ex-)bombeiros.

Nos últimos anos, as “milícias” que operam no Grande Rio intensificaram a expulsão de traficantes de várias grandes favelas e a venda de “proteção” à população pobre, estabelecendo padrões de intimidação e extorsão que já chegaram, inclusive, a alguns bairros da cidade formal. Ao que tudo indica, as “milícias” representam um outro patamar do capitalismo criminal-informal no Rio de Janeiro, no que se refere ao comércio de drogas de varejo e a outras atividades econômicas: em vez de apenas extorquir traficantes, policiais e ex-policiais passaram a desterritorializar os “criminosos sem uniforme” (“criminosos de uniforme” é como a população pobre do Rio de Janeiro, obviamente não sem razão, muitas vezes se refere à polícia) e a operar, eles mesmos, diferentes tipos de negócios ilícitos. Ironicamente, entre esses negócios ilícitos (e ao lado da venda de “proteção” contra os traficantes) está, ao menos em alguns casos, o próprio tráfico de drogas. Também do ângulo (sócio)político a ascensão das “milícias” vem representando um novo e grave momento na história do Rio: diferentemente dos “esquadrões da morte” de épocas passadas, os “milicianos” de hoje largamente se autonomizaram, não se contentando em prestar serviços para comerciantes de periferia ameaçados por pequenos bandidos e assustados; passaram, eles mesmos, a operar sistematicamente negócios, com base na territorialização (controle espacial) exercido sobre certas áreas e suas populações. E, como já se disse, já começaram a eleger seus próprios homens de confiança para exercer mandatos legislativos.

No Rio de Janeiro, há muito tempo que a população, descrente de uma polícia reconhecidamente corrupta e (e, em parte, porque) deficientemente remunerada, equipada e treinada, faz brincadeiras do tipo: “Socorro! Chama o ladrão, que a polícia vem aí!” (Notadamente para a população das favelas, espremida entre a cruz e a caldeirinha, os traficantes de varejo, às vezes, realmente representam quase que um mal menor – coisa, aliás, além da compreensão da classe média, que, por conta disso, acostumou-se a acusar os favelados, entre outras coisas, de “coniventes” com os traficantes, como se fosse uma questão de escolha.) Em face das “milícias”, é de se perguntar: no caso de espaços controlados não por criminosos em sentido mais corriqueiro, mas sim por (ex-)policiais corruptos e criminosos, o que resta, aos olhos da população pobre, de credibilidade do Estado, a começar por sua face repressora? E mais: o que se poderá esperar, no longo prazo, caso a “instabilidade” do varejão [venda a retalho] do tráfico semiorganizado (constantes e sangrentas disputas territoriais, na verdade disputas por mercado e pontos logisticamente estratégicos) seja substituída por uma razoável “estabilidade” de uma “paz miliciana”, flanqueada por diversos arranjos e acumpliciamentos com a face formal do Estado capitalista?… São questões como essa que eu, preocupado sobretudo com as consequências em matéria de margem de manobra para os movimentos sociais emancipatórios, levantei em meu livro Fobópole [1].

“Pertencentes” ao Estado (em sua face formal), aos chefetes microlocais do tráfico de drogas ou a “milicianos”, as “comunidades”, de fato, nunca se pertenceram plenamente.

O papel da mídia

O papel da grande imprensa tem se revelado crucial e, pode-se dizer, estratégico, ao longo deste mais recente capítulo da militarização da questão urbana.

A (re)produção ampliada dos sentimentos de medo e insegurança da população é indescolável, como procurei enfatizar em Fobópole, do tripé constituído pelo mercado da segurança (que fabrica armas, vende carros com blindagem especial e oferece uma legião de vigilantes particulares, mas também constrói “condomínios fechados”, shopping centers e outros símbolos da autossegregação da elite e da classe média alta), pelo sistema político-eleitoral (que cada vez mais explora o medo do eleitorado, seja em relação ao terrorismo – como nos Estados Unidos -, seja em relação à criminalidade violenta ordinária – como no Brasil) e pelo mercado da informação. No momento, observa-se, no Rio de Janeiro, uma interessante mudança de tom por parte da mídia, em especial por parte da TV Globo (e da Globonews, de TV a cabo) e do jornal O Globo: em vez de, fundamentalmente, explorar os fatos relativos à criminalidade violenta, conferindo ao Rio de Janeiro um destaque parcialmente desproporcional (uma vez que, no que se refere a vários tipos de crimes violentos, a começar pelos homicídios, desde a década de 80 que se pode facilmente constatar como outras capitais, por exemplo Recife, geralmente apresentaram índices mais elevados que o Rio), a mídia “global” passou a investir maciçamente no que poderia ser chamado de a construção de um “épico” fortemente ideológico: as Forças do Bem contra as Forças do Mal, o “Dia D”, a colaboração e o apoio da população (por meio do “Disque Denúncia” e, também, constatável mediante pesquisas de opinião)…

Corações e mentes (os corações muito mais que as mentes) vêm sendo inusitadamente mobilizados para dar suporte de massas às “operações de guerra” empreendidas pelo Estado. A Rede Globo, muito embora tenha, timidamente, começado a noticiar, a partir de 30 de novembro, relatos de abusos das forças policiais contra moradores da Vila Cruzeiro e do Complexo do Alemão, não deixou de produzir um estilo de cobertura jornalística que, muito mais do que ser acriticamente simpático às ações de “reconquista” em curso, tem se revelado até operacionalmente simbiótico com o Estado e quase indissociável de sua dinâmica.

O estilo de outras empresas jornalísticas não tem sido muito diferente, se bem que a Folha de São Paulo (ou um ou outro articulista da Folha, mas não todos) venha se mostrando, a esse respeito, um pouco mais comedida e um pouco menos sensacionalista. Uma pequena matéria de um dos articulistas da Folha (Nelson de Sá), publicada em um cantinho da página C5 da edição de 29/11/2010, traz, porém, o que pode ser reputado como uma das chaves para o nosso entendimento da construção do “épico” acima mencionado:
Ameaçada pela Record no Rio, a Globo derrubou parte da programação regular a partir de quinta, repetindo a cobertura da enchente que em 1966, em cinco dias, com Walter Clark, a estabeleceu como a TV da cidade.
Assim foi até ontem, com a tomada do Complexo do Alemão […] – e sua transmissão ao vivo bateu a Record por grande margem.
E prossegue assim o articulista:
A cobertura global […] se fundiu ao próprio Estado, em engajamento semelhante ao da Fox News no Iraque. Sua repórter chegou ao Alemão ao lado da polícia. […]
O discurso de refundação do Estado nas áreas retomadas foi único, da cobertura como das autoridades na transmissão. […] No dizer do relações públicas da Polícia Militar, “um novo tipo de guerra, também é uma guerra midiática”.
Poderíamos dizer: é, essencialmente, e em vários sentidos, uma “guerra midiática”…

A dimensão “biopolítica” das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs)

Em excelente artigo publicado neste Passa Palavra, Eduardo Tomazine Teixeira examinou, meses atrás, algumas características das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), implementadas já em pouco mais de dez favelas do Rio de Janeiro [2]. Eduardo Tomazine contribui, entre outras coisas, para chamar a atenção para a geograficidade da estratégia das UPPs, como a sua localização preferencial (favelas encravadas em meio a áreas turísticas e de residência dos mais privilegiados, na Zona Sul da cidade).

Ao que tudo indica, as UPPs representam, ao menos em parte, uma espécie de eficaz asfixia do tráfico de varejo, pontualmente, ao se lograr a desterritorialização dos traficantes de varejo em relação a algumas favelas. É preciso salientar, contudo, para além disso, não apenas o que já vem sendo comentado (geralmente de modo superficial, por parte da grande imprensa) na cidade, no que diz respeito ao temor da classe média de uma “migração” cada vez maior da violência para a “cidade formal”, devido ao desespero de traficantes que se veriam sem grande parte de sua fonte de renda habitual; é preciso grifar [sublinhar] que a estratégia das UPPs, independentemente de suas outras limitações (e possíveis “perversidades”), é fundamentalmente irreprodutível em larga escala. Já em 26 de novembro, jornalistas da Folha de São Paulo, repercutindo declarações da Secretaria de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro, informaram que “não haverá instalação imediata de uma UPP na comunidade [da Vila Cruzeiro] – para isso seria necessário um efetivo de 2.000 a 3.000 novos policiais, hoje indisponível” (pág. C3). Como, em uma escala global, os Estados Unidos bem sabem (e como os antigos romanos, Napoleão e Hitler, em parte dolorosamente, aprenderam muito bem), mais cedo do que tarde qualquer potência militar percebe os limites para se multiplicar contingentes de ocupação em “territórios inimigos”. A geopolítica urbana em curso de aplicação no Rio de Janeiro, tão exitosa midiaticamente – do apoio entusiasmado que a classe média e mesmo os experts em segurança pública (e até muitos pobres) vêm dando às UPPs ao sucesso de operações pontuais de “reconquista territorial” como a do assim apelidado “Dia D” -, não é, contudo, exceção. As UPPs não poderão ser instaladas em mais que uma pequena fração das cerca de mil favelas do Rio de Janeiro, e não haveria como ser diferente.

Existem, no entanto, outras consequências das UPPs. Se os traficantes, fisicamente, migrarem para favelas mais distantes e lá se reinstalarem, desalojando outros traficantes ou territorializando novos espaços segregados, isso não contrariará frontalmente o atingimento do objetivo prioritário que é, afinal de contas, garantir maior tranquilidade para a classe média e os turistas, já pensando na Copa do Mundo em 2014 e nas Olimpíadas em 2016. Mas há mais: conforme o deputado estadual Marcelo Freixo já chegou, com preocupação, a reconhecer, em artigos de jornal e declarações públicas, existe um risco de que, com a valorização imobiliária que se vem observando no entorno formal de favelas já “pacificadas” e mesmo no que concerne ao mercado informal de certas favelas, a própria dinâmica de valorização do espaço vá, aos poucos, empurrando para fora das favelas da Zona Sul os moradores mais pobres, que seriam substituídos por camadas de poder aquisitivo um pouco maior – ou até bem maior, dependendo da localização. É o que se conhece, há muitos anos, como “expulsão branca”, e que, segundo algumas evidências, já teve início, acanhadamente, com o próprio Programa Favela-Bairro, anos atrás. As UPPs, portanto, a serviço, no médio e longo prazos, do capital imobiliário? Eis um cenário altamente provável, e surgem os indícios de que, especialmente em uma parte da cidade, isso já começa, devagar, a se tornar realidade.

Qual seria, enfim, o significado das UPPs, no contexto da geopolítica urbana em curso, e que envolve diferentes aspectos?

O filme “Tropa de Elite” pareceu induzir o espectador a desdenhar preocupações críticas em torno do papel do Estado e do desrespeito aos direitos humanos, usando, como uma de suas “ilustrações” mais emblemáticas, uma turma de estudantes da PUC que discutia ideias do filósofo Michel Foucault [3]. À luz da evidente importância estratégica do controle territorial nos marcos da atual linha da Secretaria de Segurança Pública do Rio, conforme tem sublinhado insistentemente o secretário Mariano Beltrame, vale a pena, justamente, retornar a Foucault, inclusive para complementá-lo (e, em parte, retificá-lo) em dois pontos:

1) Muito embora ele tenha colaborado de maneira destacada e quase ímpar para a compreensão da “microfísica do poder” e da importância de se enxergar o poder (e a ideia de poder) para muito além do Estado, o termo “território” foi por ele empregado, via de regra, para se referir ao aparelho de Estado e à sua “soberania”. No entanto, todo e cada poder que se exerce, inclusive nas escalas mais acanhadas, “microfísicas”, possui uma dimensão espacial, vale dizer, propriamente territorial [4]. Como outros autores também já reconheceram – seja explícita ou implicitamente [5] -, o uso que Foucault faz do termo “território” é bastante restrito. O que está em curso, no Rio de Janeiro, é um complexo conflito de territorialidades, com interesses econômicos e políticos divergentes por trás (sendo que ainda falta incorporar um agente à análise, as “milícias”, o que será feito na próxima seção). E, por parte do Estado, claramente se vê o desenho, cada vez mais nítido, de uma geopolítica urbana – ainda tateante, capenga (basta pensar na ineficiência e no elevado grau de corrupção que assolam as polícias fluminenses), mas nem por isso negligenciável.

2) Durante seus últimos cursos no Collège de France, Foucault testou e explorou o assunto da "biopolítica”, que seria uma “tecnologia de poder” distinta da “soberania” (que um Estado exerceria territorialmente) e da “disciplina” (que seria exercida com o auxílio de estruturas espaciais como a prisão, o manicômio, etc.). A “biopolítica”, como o nome sugere, seria a tentativa de enquadramento de populações não por meio da repressão, mas sim mediante um conhecimento de características populacionais (através de recenseamentos e similares) e uma tentativa de interferir, com base nisso, para fazer face a situações contigentes e largamente inevitáveis (mas de algum modo a serem enfrentadas), como epidemias [6]. As preocupações com a “segurança pública” igualmente devem, e com destaque, ser articuladas com as atuações estatais no campo “biopolítico”, não menos que os esforços de enquadramento especificamente soft e vinculados às políticas e legislações de “bem-estar” (legislação trabalhista e previdenciária, etc.), como foi o caso, historicamente, principalmente em certos países europeus – coisas que podem ser entendidas como as versões modernas do “poder pastoral”, para utilizar uma outra expressão foucauldiana [7]. Todavia, Foucault equivocou-se um pouco ao sugerir que o “poder pastoral”, mais que ao “território” (como é o caso do Estado em sua busca de preservação da soberania), visaria as populações, em sua multiplicidade [8]. Ora, Foucault sabia que, também no que diz respeito à “segurança”, populações e espaço são, sempre, indissociáveis – e, como se pode ver, as UPPs, ao mesclarem uma promessa de políticas públicas “sociais” (compensatórias…) com uma ocupação armada, apresentam, cristalinamente, uma dimensão “biopolítica”, para além das tradicionais ações meramente repressivas. Dessa combinação deriva, aliás, em grande parte, a sua ampla aceitação, inclusive por uma classe média “arejada”. Mas não se trata somente do “espaço”, em geral (na sua materialidade, ou como um “meio” em que operam redes e fluxos). Trata-se, muito propriamente, também de territórios e processos de territorialização (e desterritorialização). Territórios controlados por agentes diversos; territórios em escala microlocal (favela, bairro, conjunto habitacional…), que em parte se superpõem relativamente a outros territórios referenciados a outras escalas, em parte se justapõem uns aos outros; territórios que atritam uns com os outros e se sucedem, ao longo das fricções e alterações em matéria de relações de poder. A territorialidade conta, portanto, e muito; em todas as escalas, e em conexão com as políticas estatais de controle para além da “soberania” e da “disciplina”, da repressão, do “vigiar e punir”.

O Haiti como “laboratório”: o significado mais amplo da “reconquista do(s) território(s)”

Para quem conhece e gosta de História, a palavra “reconquista” se associa a um processo associado a uma espiral de fervor patriótico e fanatismo religioso: la reconquista da Península Ibérica, com a expulsão definitiva dos mouros pelos espanhóis. Reconquista que, como se sabe, foi a antessala da conquista da América e a escravização e o genocídio das populações ameríndias.

O ministro da Defesa, Nelson Jobim, já havia, em 2007, após inspecionar tropas brasileiras estacionadas no Haiti, em “missão de paz” sob mandato da ONU, dado a entender que aquela experiência serviria de base para futuras operações das Forças Armadas em solo brasileiro, desempenhando missões de preservação da “ordem pública” (ou seja, de polícia). E, com efeito, os homens da Brigada Paraquedista que apoiaram a “reconquista” do Complexo do Alemão serviram, precisamente, no Haiti. De Cité Soleil (maior favela de Porto Príncipe) para o Complexo do Alemão: realiza-se, gradualmente, um plano tecido de longa data.

Vale a pena registrar, de passagem, que, em 1988, o então comandante e diretor de estudos da Escola Superior de Guerra (ESG), Gal. Muniz Oliva, já fazia notar, ainda que acanhadamente, em um artigo intitulado “ESG: Opções político-estratégicas para o Brasil”, a importância crescente de preocupações envolvendo a criminalidade comum como fator de tensionamento social [9]. Antes mesmo do fim “declarado” da Guerra Fria, por conseguinte, já havia, nas fileiras militares brasileiras, quem entrevisse e sugerisse, nas entrelinhas, o gradual deslocamento do foco a propósito do “inimigo interno”: em vez dos “comunistas”, os “bandidos” e outros representantes de comportamentos contrários à “ordem”. Curiosamente, os novos “subversivos” ofereceriam alguns elementos de conexão aparentes com as típicas obsessões do imaginário militar brasileiro: simbólico-terminologicamente e, em parte, organizacionalmente (“Comando Vermelho”, “Primeiro Comando da Capital”…). Não têm faltado, por isso — entre militares e policiais, mas também no meio jornalístico e até na academia —, aqueles que, nos últimos anos, e novamente em fins de novembro de 2010, tecem paralelos (às vezes parcialmente pertinentes, mas comummente exagerados e sem rigor) entre as ações e padrões de atuação dos criminosos, de um lado, e práticas guerrilheiras e terroristas, de outro.

Em 2 de dezembro, portanto menos de uma semana depois da “reconquista” do Complexo do Alemão com o auxílio dos paraquedistas, as emissoras de televisão noticiavam a decisão de, em um futuro próximo, ou em uma “segunda fase” da operação policial-militar, o Exército estabelecer um contingente permanente no referido Complexo, em missão um tanto análoga à que ele vem desempenhando no Haiti. (No mesmo dia, emissoras de TV divulgaram pesquisa de opinião realizada pelo Ibope, conforme a qual 88% da população do Rio estão apoiando as medidas tomadas contra o tráfico de drogas, e nada menos que 93% aprovam a participação das Forças Armadas.) Eis, coerentemente, o título da manchete principal do jornal Estado de Minas do dia 3 de dezembro, estampada em letras garrafais: “O Haiti é aqui”.

Conforme demonstrou Jorge Zaverucha [10], e como eu também indiquei [11], a utilização das Forças Armadas para finalidades de controle social (sócio-espacial) interno ao país é algo que vem sendo preparado e ensaiado há muito tempo, desde o início da década de 90. Os riscos disso não são poucos, em um país marcado pela alternância de regimes autoritários explícitos (como em 1964-1985) e momentos de “democracia” representativa um tanto caricatural, na qual os direitos humanos de grande parcela da população são sistematicamente desrespeitados. Mas, como o medo é mau conselheiro, amplos setores da sociedade civil (a começar pela grande imprensa) se mostram crescentemente favoráveis a apoiar, e com cada vez menos ressalvas, a militarização explícita da questão urbana. Se antes esta era amiúde reduzida a um “caso de polícia”, agora avança-se, a passos largos, para torná-la, de maneira plenamente institucionalizada, uma questão militar. Os efeitos que isso pode, no longo prazo, acarretar, são em parte previsíveis: aumento da corrupção e dos “desvios de conduta” nas fileiras do próprio Exército; possibilidade incrementada de sistemática utilização futura das tropas para reprimir movimentos sociais emancipatórios e todo protesto que for criminalizado e julgado como uma ameaça à “ordem pública”, em uma reedição atualizada dos temores paranoides referentes à “segurança nacional”; novo momento histórico de afastamento dos militares em relação ao papel precípuo que lhes consagra a Constituição, a defesa externa, com prováveis consequências políticas internas nefastas. Porém, quem liga para tudo isso, nas atuais circunstâncias?…

Seja lá como for, é de se perguntar: para além dos efeitos de chauvinismo local (ou, em menor grau, também propriamente nacional), com os sentimentos de “estamos vencendo” insuflados em grande parte da população em meio à “guerra midiática”, o que é que, afinal de contas, podem mesmo os mais crédulos esperar já no médio prazo (próximos meses, próximo ano) no que tange ao combate à criminalidade?

As imagens das tropas do Exército desfilando por ruelas do Complexo do Alemão, inclusive com banda de música, em 2008, parecem ter caído no esquecimento. Interessantemente, pareceu a alguns (ou a muitos), naquela ocasião, que as “forças da ordem” se haviam apossado, definitivamente, daquele “território inimigo”. Não se passou muito tempo para que, atropelado pelos fatos, o efeito do espalhafato midiático fosse reduzido a nada.

O que teria mudado que justificaria, agora, maior otimismo?

De certa forma, é certo que algo mudou: parece haver um grau de concertação e uma “inteligência sistêmica” maiores agora, e a entrada em cena das UPPs é apenas um aspecto (embora muito importante) do novo cenário. Quanto a isso justificar “otimismo”, entretanto, é, sem dúvida, uma questão de perspectiva. Ou de interesse(s).

Na esteira das UPPs, e apesar da onda de incêndios atribuídos aos traficantes de varejo em fins de novembro (e que foi, aliás, o que deflagrou o novo capítulo da militarização), a classe média, está, após o “Dia D”, mais aliviada. Resta saber por quanto tempo.

Quanto aos pobres, que são a grande maioria da população da cidade e do país (a despeito dos esforços de celebração midiática de uma “nova classe média” na qual, forçadamente, são enfiadas as camadas de assalariados suburbanos, periféricos e até favelados capazes de adquirir certos eletrodomésticos ou um automóvel), seguramente continuam e continuarão sendo estigmatizados e segregados, ainda que, às vezes, em lugares mais distantes – ou, também, separados internamente e classificados, político-ideologicamente, entre “bons pobres” (a “classe média baixa” “ordeira” e “bem-comportada”, residente em loteamentos irregulares ou em favelas “pacificadas”) e “maus pobres” (os moradores de ocupações de sem-teto, os ambulantes que insistem em sua estratégia de sobrevivência, os moradores de favelas “não pacificadas”…). Admirável mundo novo!

Notas
[*] Professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
[1] Marcelo Lopes de Souza, Fobópole: O medo generalizado e a militarização da questão urbana. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2008.
[2] Eduardo Tomazine Teixeira, “Unidades de Polícia Pacificadora: O que são, a que anseios respondem e quais desafios colocam aos ativismos urbanos?” 1.ª Parte aqui,  2.ª Parte: aqui,  25 de junho de 2010.
[3] Refiro-me ao primeiro dos dois filmes. “Tropa de Elite 2”, de 2010, representa uma nítida mudança de tom, talvez buscada pelo diretor (José Padilha) para se redimir da pecha de patrocinador de um “filme fascista”, acusação sofrida em função do primeiro filme.
[4] O território não deve ser entendido, como ainda hoje muitas vezes o é, como sinônimo de “espaço geográfico” em geral. Um território é um espaço social qualificado, em primeiro lugar e acima de tudo, pela dimensão do poder. Ele constitui uma espécie de “campo de força”, que corresponde às relações de poder (exercício do poder: estatal ou não, duradouro ou efêmero, heterônomo ou autônomo) referidas a um espaço material (e a identidades e ideologias sócio-espaciais) específico (vide, sobre isso, por exemplo, o texto “O território: Sobre espaço e poder, autonomia e desenvolvimento”, contido na coletânea Geografia: Conceitos e temas, organizada por Iná de Castro et al. (Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1995).
[5] Ver, por exemplo, de Rogério Haesbaert, o texto “Sociedades biopolíticas de in-segurança e des-controle dos territórios” (in: M. P. de Oliveira et al. [orgs.], O Brasil, a América Latina e o mundo: Espacialidades contemporâneas [II]. Rio de Janeiro, Lamparina, 2008).
[6] Segundo Foucault, a “biopolítica” ou o “biopoder” consistiria na “maneira como se procurou, desde o século XVIII, racionalizar os problemas postos à prática governamental pelos fenômenos próprios de um conjunto de viventes constituídos em população: saúde, higiene, natalidade, longevidade, raças…” (Michel Foucault, O nascimento da biopolítica. São Paulo: Martins Fontes, 2008, pág. 431).
[7] “[…] [A] história do pastorado como modelo, como matriz de procedimentos de governo dos homens, essa história do pastorado no mundo ocidental só começa com o cristianismo.” (Michel Foucault, Segurança, território, população. São Paulo: Martins Fontes, pág. 196) Porém, como Foucault esclarece, “[i]sso não quer dizer que o poder pastoral tenha permanecido uma estrutura invariante e fixa ao longo do quinze, dezoito ou vinte séculos da história cristã. Pode-se até mesmo dizer que esse poder pastoral, sua importância, seu vigor, a própria profundidade da sua implantação se medem pela intensidade e pela multiplicidade das agitações, revoltas, descontentamentos, lutas, batalhas, guerras sangrentas travadas em torno dele, por ele e contra ele.” (Michel Foucault, Segurança, território, população. São Paulo: Martins Fontes, pág. 197)
[8] Conforme Foucault, “[…] a ideia de um poder pastoral é a ideia de um poder que se exerce mais sobre uma multiplicidade do que sobre um território.” (Michel Foucault, Segurança, território, população. São Paulo: Martins Fontes, pág.173).
[9] Consulte-se, de Oswaldo Muniz Oliva, “ESG: Opções político-estratégicas para o Brasil”. Revista da Escola Superior de Guerra, IV(9), 1988, pp. 9-15.
[10] Jorge Zaverucha, FHC, Forças armadas e polícia: Entre o autoritarismo e a democracia (1999-2002). Rio de Janeiro, Record, 2005.
[11] Fobópole, op. cit.

Texto original:  Passa Palavra

sábado, 18 de novembro de 2017

O panoptismo de estar constantemente conectado às redes sociais



Patricia Fachin |Tradução: André Langer

A professora e pesquisadora Olaya Fernández Guerrero estuda o fenômeno do controle nas sociedades contemporâneas.
  
A noção de panoptismo, discutida por Foucault há 40 anos, “permite compreender muitas das situações que vivemos atualmente em nossas sociedades, nas quais, sob o pretexto da segurança global, intensificaram–se as medidas de vigilância e controle que se aplicam sem exceção a toda a população e que, às vezes, implicam um corte preocupante das liberdades civis”, diz a filósofa Olaya Fernández Guerrero na entrevista a seguir.

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Segundo Olaya, as novas tecnologias da informação e comunicação têm reforçado “essa visibilidade constante e permanente que tem muito de panóptico”. Nas sociedades atuais, pontua, é possível identificar duas modalidades de panoptismo. A primeira é baseada na vigilância à qual todos os cidadãos estão submetidos pelo poder político. A segunda, explica, é mais “sutil” e aceita pelas pessoas, e “se explicita na pulsão de estar constantemente conectados às redes sociais, compartilhando fotos e informações sobre o que estamos fazendo em cada momento. Este tipo de panoptismo acaba sendo muito poderoso e às vezes acaba gerando nos indivíduos um comportamento viciante e uma dependência das redes sociais que é preocupante, particularmente entre a população mais jovem; por essa razão, é urgente desenvolver uma visão crítica em relação a esse outro panoptismo que está invadindo as nossas vidas”, defende.

Olaya Fernández Guerrero é doutora em Filosofia e professora na Universidade de La Rioja, na Espanha

Confira a entrevista.

IHU On–Line – Em que sentido a ideia de panoptismo, desenvolvida por Foucault , explica as relações de poder, controle e vigilância nas sociedades atuais? Como essa ideia ajuda a entender o nosso tempo?

Olaya Fernández Guerrero – A noção de panoptismo, que aparece nos textos que Foucault escreveu há 40 anos, permite compreender muitas das situações que vivemos atualmente em nossas sociedades, nas quais, sob o pretexto da segurança global, intensificaram–se as medidas de vigilância e controle que se aplicam sem exceção a toda a população e que, às vezes, implicam um corte preocupante das liberdades civis.

IHU On–Line – Quais diria que são os exemplos concretos da manifestação do panoptismo nas sociedades atuais?

Olaya Fernández Guerrero – Atualmente, encontramos muitos elementos que estão estreitamente vinculados ao olhar vigilante e hierárquico, o que é uma das principais características do panoptismo. A instalação de câmeras de segurança em espaços públicos, o controle das comunicações através da internet ou a moda de fazer ‘selfies’ e compartilhar essas fotografias nas redes sociais são alguns exemplos que ilustram esse panoptismo contemporâneo.

IHU On–Line – Por que na nossa época o panoptismo é ainda mais forte e evidente do que na de Foucault?

Olaya Fernández Guerrero – As causas da ascensão do panoptismo são muito diversas. Entretanto, um dos fatores que mais contribuíram para essa mudança são as novas tecnologias da informação e comunicação, que têm uma presença crescente na vida cotidiana dos indivíduos e que reforçam essa visibilidade constante e permanente que tem muito de panóptico.

IHU On–Line – Como essa ideia de panoptismo cria uma nova concepção de sujeito?

Olaya Fernández Guerrero – Os diversos dispositivos panópticos acabam fazendo parte dos processos de criação de subjetividades e transformam–se, além disso, em elementos mediadores das nossas relações sociais e interpessoais. O próprio Foucault já escreveu sobre esta questão, identificando a sociedade contemporânea como uma sociedade disciplinar na qual o dispositivo panóptico cumpre um papel muito importante, uma vez que submete os indivíduos a uma vigilância total e invasiva que acaba produzindo uma interiorização das normas e uma ampla adaptação aos padrões de conduta que a sociedade estabelece para regular cada aspecto de nossas vidas.

IHU On–Line – Como a categoria de povo se relaciona com essa ideia de panoptismo?

Olaya Fernández Guerrero – No contexto do panoptismo, o povo, ou melhor, a cidadania, perde parte da sua autonomia e liberdade de ação e transforma–se em uma coletividade administrada e vigiada, submetida a um regime de visibilidade em que todos, e cada um dos indivíduos, estão sujeitos à supervisão e são colocados sob suspeita.

IHU On–Line – Como a senhora compreende, de um lado, a crítica ao panoptismo e, de outro, o uso que as pessoas fazem, por exemplo, de espaços de vigilância como o Facebook?

Olaya Fernández Guerrero – Existem pelo menos dois tipos, duas modalidades, de panoptismo: uma delas é o panoptismo baseado na vigilância e no controle a que estão submetidos todos os indivíduos pelos poderes políticos, pelas forças de segurança etc., e que é difícil contornar. Este panoptismo é mais fácil de identificar e muitas pessoas adotam uma postura crítica em relação a ele. Mas, nas sociedades atuais, surgiu também outra forma de panoptismo mais sutil, ao qual muitos indivíduos aceitam (aceitamos) se submeter voluntariamente, e que se explicita na pulsão de estar constantemente conectados às redes sociais, compartilhando fotos e informações sobre o que estamos fazendo em cada momento. Este tipo de panoptismo acaba sendo muito poderoso e às vezes acaba gerando nos indivíduos um comportamento viciante e uma dependência das redes sociais que é preocupante, particularmente entre a população mais jovem; por essa razão, é urgente desenvolver uma visão crítica em relação a esse outro panoptismo que está invadindo as nossas vidas.

IHU On–Line – O que seria uma alternativa ou uma resistência ao modelo de controle, vigilância e poder advinda da ideia de panoptismo? Como romper com esse modelo?

Olaya Fernández Guerrero – Para começar a propor opções de resistência, a primeira coisa a se fazer é identificar quais são os dispositivos de controle e vigilância aos quais estamos submetidos, e a partir daí desenvolver uma perspectiva crítica e refletir sobre as maneiras mais efetivas para contornar aqueles modos de controle e vigilância que nos pareçam mais negativos. Na minha opinião, o mais adequado é realizar práticas de resistência de caráter concreto e contextualizado, que devem ser desenvolvidas no âmbito das atividades cotidianas de cada indivíduo.

IHU On–Line – Quais são os exemplos de resistência ao panoptismo hoje?

Olaya Fernández Guerrero – Em relação ao panoptismo ao qual somos submetidos pelos poderes públicos, penso que é importante continuar a questionar o discurso da segurança global, uma vez que em muitos casos este é utilizado como justificativa para cortar as liberdades civis e aplicar modelos de vigilância que são inaceitáveis do ponto de vista ético. Também é preciso fazer um uso mais responsável das redes sociais e, desse modo, evitar contribuir para esse panoptismo ‘voluntário’, ao qual acabamos cedendo cada vez que compartilhamos imagens e informações pessoais nas redes sociais, e que contribui para essa ‘visibilidade total’ e nos coloca em uma situação de vulnerabilidade e de constante escrutínio e sujeição ao olhar alheio

Fonte: IHU- On-line

sexta-feira, 17 de novembro de 2017

Para transcender a colonialidade

Por Luciano Gallas e Ricardo Machado


Luciana Maria de Aragão Ballestrin é bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS, mestre em Ciência Política pela UFRGS e doutora em Ciência Política pela Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG, tendo realizado doutorado sanduíche na Universidade de Coimbra, Portugal. Foi professora assistente substituta na UFRGS e atualmente é professora adjunta de Ciência Política e coordenadora do curso de Relações Internacionais da Universidade Federal de Pelotas - UFPEL. Confira a entrevista.



IHU On-Line - Em síntese, como pode ser definido o “giro descolonial” e seu posicionamento teórico e político pelo colonizado?

Luciana Ballestrin - A ideia de “giro” remete a uma noção de “virada” que talvez seja melhor captada pela palavra em inglês “turn”. No campo das Humanidades em geral esta expressão é utilizada quando ocorre uma transformação, um redirecionamento de determinado assentamento epistêmico, por exemplo, “linguistic turn”, “cultural turn”. Por sua vez, a expressão “decolonial” não pode ser confundida com “descolonização”. Em termos históricos e temporais, esta última indica uma superação do colonialismo; por seu turno, a ideia de decolonialidade indica exatamente o contrário e procura transcender a colonialidade, a face obscura da modernidade, que permanece operando ainda nos dias de hoje em um padrão mundial de poder. Trata-se de uma elaboração cunhada pelo grupo Modernidade/Colonialidade nos anos 2000 e que pretende inserir a América Latina de uma forma mais radical e posicionada no debate pós-colonial, muitas vezes criticado por um excesso de culturalismo e mesmo eurocentrismo devido à influência pós-estrutural e pós-moderna.

O giro decolonial procura responder às lógicas da colonialidade do poder, ser e saber, apostando em outras experiências políticas, vivências culturais, alternativas econômicas e produção do conhecimento obscurecidas, destruídas ou bloqueadas pelo ocidentalismo, eurocentrismo e liberalismo dominantes. Concebe a importância da interação entre teoria e prática, buscando dialogar com a gramática das lutas sociais, populares e subalternizadas dos povos que compuseram e compõem a invenção da ideia de América Latina.

IHU On-Line- De que forma a herança da colonização ainda impacta os indivíduos e a sociedade no mundo globalizado?

Luciana Ballestrin - Como processo histórico, a colonização produziu uma situação colonial — para colonizadores e colonizados — que originou um tipo de violência específica nas sociedades encontradas pelos europeus, a violência colonial. Tendo implicações políticas, culturais, econômicas e epistêmicas, o colonialismo foi operado e reproduzido junto à constituição de outros processos históricos, tais como capitalismo, racismo, imperialismo, ocidentalismo e epistemicídio. Por exemplo, as origens históricas do problema fundiário e do preconceito de raça — uma categoria mental/cultural/política criada a serviço da hierarquização, classificação e subjugação dos povos — que operam persistentemente no Brasil não podem ser explicadas sem considerar o colonialismo externo e interno. O conceito de colonialidade foi construído para contemporizar o colonialismo, lembrando que, mesmo em um mundo supostamente globalizado, as lógicas imperiais e coloniais operam das mais diferentes maneiras, sobretudo nas questões que envolvem as disputas políticas e econômicas entre o Norte e o Sul Global. 

IHU On-Line - Que associação pode ser feita entre os estudos pós-coloniais e os estudos pós-estruturais, desconstrutivistas e pós-modernos?

Luciana Ballestrin - Os estudos pós-coloniais, se entendidos como uma escola difundida pelos estudos culturais e literários da década de 1980 na Inglaterra e nos Estados Unidos, possuem forte influência de todas essas correntes. Sobretudo, nas questões que envolvem a desconstrução de binarismos e essencialismos, a elaboração da ideia de um sujeito não ocidental, a aposta na linguagem e no discurso, a importância do lugar de enunciação da fala. Particularmente, prefiro pensar no pós-colonialismo de forma mais ampla, cujas origens podem ser rastreadas antes mesmo de tantas escolas orientadas pelo “pós”, a fim de contemplar escritos anticoloniais como os de Mariátegui, Fanon, Césaire  e Memmi . 

IHU On-Line - Qual a contribuição da filosofia da libertação para a teoria descolonial?

Luciana Ballestrin - A filosofia da libertação possui bastante influência na inflexão decolonial devido à participação do filósofo Enrique Dussel no programa Modernidade/Colonialidade e sua abertura a teoria crítica latino-americana. Sua influência pode ser observada em várias elaborações do coletivo, com referência especial à ideia de Transmodernidade.

IHU On-Line - É possível perceber, nas sociedades latino-americanas atuais, algum grau de decolonização do poder?

Luciana Ballestrin - A corroboração do argumento pela experiência viria contemporaneamente nas tentativas de refundação do Estado, o chamado novo constitucionalismo latino-americano, a luta dos movimentos sociais e a afirmação de identidades historicamente subalternizadas, como indígenas e quilombolas. Em diferentes pontos do continente se observaria a resistência contra a lógica da modernidade/colonialidade e a constituição de outras formas de relacionamento entre sujeito, Estado, direito e política. No plano prático, o projeto de decolonização política vincula-se ao projeto desocidentalização epistêmica, podendo ser encontrado, em nível institucional, mais evidentemente nos governos boliviano e equatoriano. A democracia se veria aprofundada ao tomar outras referências para as ideias de comunidade, território, natureza e cultura dos povos originários. Basicamente, a ressignificação e decolonização da própria ideia europeia e liberal de sociedade civil. Obviamente, este processo não está livre de contradições e problemas, devendo ser analisado com cautela em termos de continuidades e rupturas.

IHU On-Line - E quanto à teoria política, é possível perceber alguma decolonização da academia?
Luciana Ballestrin - A área de teoria política é particularmente resistente, posto que sensível à proposta da decolonização, visto sua vinculação histórica e epistemológica com o eurocentrismo. Contudo, a proposta de provincialização da Europa, a problematização das identidades colonizadas e subalternizadas, a denúncia da permanência das relações de colonialidade e a demonstração das diferentes trajetórias nas sociedades pós-coloniais de conceitos como os de sociedade civil, cidadania e nação, são contribuições do pós-colonialismo válidas para a elaboração de uma teoria política mais pluriversal e mais atenta às questões das democracias pós-coloniais.

IHU On-Line - Há convivência possível entre a proposta de decolonização do saber e o projeto neoliberal de ciências?

Luciana Ballestrin - Idealmente não, mas na prática ela ocorre. Há sempre o risco de uma “moda” acadêmica que, por mais transformadora que pretenda ser, pode facilmente enquadrar-se em um esquema produtivista e neoliberal do conhecimento, reproduzindo a divisão global do trabalho nas Ciências Sociais. Vários autores das correntes mencionadas trabalham em poderosas universidades do Norte Global, sendo este mesmo um ponto de crítica do qual comumente eles têm de se “defender”. Talvez, o grande paradoxo das teorias do Sul resida na permanência de sua condição periférica, sem a qual se perdem alguns dos seus sentidos. 

IHU On-Line - Gostaria de comentar algo não mencionado nas questões anteriores? 

Luciana Ballestrin - Tendo a simpatizar com o diagnóstico de Raewyn Connell  de que estamos ante uma revolução eminente na teoria social. Certamente, este não é o sentido empregado ao termo por Thomas Kuhn . A teoria como um instrumento de poder não é uma elaboração nova, podendo ser encontrada do marxismo ao pós-estruturalismo. Mas a teoria como um instrumento de poder de uma dada região hemisférica escapou a ambos os cânones. Este é um diagnóstico mais político do que teórico e envolve a necessidade da (re)politização da teoria, de alguma forma perdida na infeliz enunciação de que havíamos chegado ao fim da história.

Fonte original: IHU On-line