Por Luciano Gallas e Ricardo Machado
Luciana Maria de
Aragão Ballestrin é bacharel em Ciências Sociais
pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS, mestre em Ciência
Política pela UFRGS e doutora em Ciência Política pela Universidade Federal de
Minas Gerais - UFMG, tendo realizado doutorado sanduíche na Universidade de
Coimbra, Portugal. Foi professora assistente substituta na UFRGS e atualmente é
professora adjunta de Ciência Política e coordenadora do curso de Relações
Internacionais da Universidade Federal de Pelotas - UFPEL. Confira a
entrevista.
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Em síntese, como pode ser definido o “giro descolonial” e seu posicionamento
teórico e político pelo colonizado?
Luciana Ballestrin
- A ideia de “giro” remete a uma noção
de “virada” que talvez seja melhor captada pela palavra em inglês “turn”. No
campo das Humanidades em geral esta expressão é utilizada quando ocorre uma
transformação, um redirecionamento de determinado assentamento epistêmico, por
exemplo, “linguistic turn”, “cultural turn”. Por sua vez, a expressão
“decolonial” não pode ser confundida com “descolonização”. Em termos históricos
e temporais, esta última indica uma superação do colonialismo; por seu turno, a
ideia de decolonialidade indica exatamente o contrário e procura transcender a
colonialidade, a face obscura da modernidade, que permanece operando ainda nos
dias de hoje em um padrão mundial de poder. Trata-se de uma elaboração
cunhada pelo grupo Modernidade/Colonialidade nos anos 2000 e que pretende
inserir a América Latina de uma forma mais radical e posicionada no debate
pós-colonial, muitas vezes criticado por um excesso de culturalismo e mesmo
eurocentrismo devido à influência pós-estrutural e pós-moderna.
O giro decolonial procura responder às lógicas da colonialidade
do poder, ser e saber, apostando em outras experiências políticas, vivências
culturais, alternativas econômicas e produção do conhecimento obscurecidas,
destruídas ou bloqueadas pelo ocidentalismo, eurocentrismo e liberalismo
dominantes. Concebe a importância da interação entre teoria e prática, buscando
dialogar com a gramática das lutas sociais, populares e subalternizadas dos
povos que compuseram e compõem a invenção da ideia de América Latina.
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De que forma a herança da colonização ainda impacta os indivíduos e a sociedade
no mundo globalizado?
Luciana Ballestrin
- Como processo histórico, a colonização produziu uma
situação colonial — para colonizadores e colonizados — que originou um tipo de
violência específica nas sociedades encontradas pelos europeus, a violência
colonial. Tendo implicações políticas, culturais, econômicas e epistêmicas, o
colonialismo foi operado e reproduzido junto à constituição de outros processos
históricos, tais como capitalismo, racismo, imperialismo, ocidentalismo e
epistemicídio. Por exemplo, as origens históricas do problema fundiário e do
preconceito de raça — uma categoria mental/cultural/política criada a serviço
da hierarquização, classificação e subjugação dos povos — que operam
persistentemente no Brasil não podem ser explicadas sem considerar o
colonialismo externo e interno. O conceito de colonialidade foi construído para
contemporizar o colonialismo, lembrando que, mesmo em um mundo supostamente globalizado,
as lógicas imperiais e coloniais operam das mais diferentes maneiras, sobretudo
nas questões que envolvem as disputas políticas e econômicas entre o Norte e o
Sul Global.
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Que associação pode ser feita entre os estudos pós-coloniais e os estudos
pós-estruturais, desconstrutivistas e pós-modernos?
Luciana Ballestrin
- Os estudos pós-coloniais, se entendidos como uma
escola difundida pelos estudos culturais e literários da década de 1980 na
Inglaterra e nos Estados Unidos, possuem forte influência de todas essas
correntes. Sobretudo, nas questões que envolvem a desconstrução de binarismos e
essencialismos, a elaboração da ideia de um sujeito não ocidental, a aposta na
linguagem e no discurso, a importância do lugar de enunciação da fala.
Particularmente, prefiro pensar no pós-colonialismo de forma mais ampla, cujas
origens podem ser rastreadas antes mesmo de tantas escolas orientadas pelo
“pós”, a fim de contemplar escritos anticoloniais como os de Mariátegui, Fanon,
Césaire e Memmi .
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Qual a contribuição da filosofia da libertação para a teoria descolonial?
Luciana Ballestrin
- A filosofia da libertação possui bastante influência
na inflexão decolonial devido à participação do filósofo Enrique Dussel no
programa Modernidade/Colonialidade e sua abertura a teoria crítica
latino-americana. Sua influência pode ser observada em várias elaborações do
coletivo, com referência especial à ideia de Transmodernidade.
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É possível perceber, nas sociedades latino-americanas atuais, algum grau de
decolonização do poder?
Luciana Ballestrin
- A corroboração do argumento pela experiência viria
contemporaneamente nas tentativas de refundação do Estado, o chamado novo
constitucionalismo latino-americano, a luta dos movimentos sociais e a
afirmação de identidades historicamente subalternizadas, como indígenas e
quilombolas. Em diferentes pontos do continente se observaria a resistência
contra a lógica da modernidade/colonialidade e a constituição de outras formas
de relacionamento entre sujeito, Estado, direito e política. No plano prático,
o projeto de decolonização política vincula-se ao projeto desocidentalização
epistêmica, podendo ser encontrado, em nível institucional, mais evidentemente
nos governos boliviano e equatoriano. A democracia se veria aprofundada ao
tomar outras referências para as ideias de comunidade, território, natureza e
cultura dos povos originários. Basicamente, a ressignificação e decolonização
da própria ideia europeia e liberal de sociedade civil. Obviamente, este
processo não está livre de contradições e problemas, devendo ser analisado com
cautela em termos de continuidades e rupturas.
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E quanto à teoria política, é possível perceber alguma decolonização da
academia?
Luciana
Ballestrin - A área de teoria política é
particularmente resistente, posto que sensível à proposta da decolonização,
visto sua vinculação histórica e epistemológica com o eurocentrismo. Contudo, a
proposta de provincialização da Europa, a problematização das identidades
colonizadas e subalternizadas, a denúncia da permanência das relações de
colonialidade e a demonstração das diferentes trajetórias nas sociedades
pós-coloniais de conceitos como os de sociedade civil, cidadania e nação, são
contribuições do pós-colonialismo válidas para a elaboração de uma teoria
política mais pluriversal e mais atenta às questões das democracias
pós-coloniais.
IHU On-Line -
Há convivência possível entre a proposta de decolonização do saber e o projeto
neoliberal de ciências?
Luciana Ballestrin
- Idealmente não, mas na prática ela ocorre. Há sempre
o risco de uma “moda” acadêmica que, por mais transformadora que pretenda ser,
pode facilmente enquadrar-se em um esquema produtivista e neoliberal do
conhecimento, reproduzindo a divisão global do trabalho nas Ciências Sociais.
Vários autores das correntes mencionadas trabalham em poderosas universidades
do Norte Global, sendo este mesmo um ponto de crítica do qual comumente eles
têm de se “defender”. Talvez, o grande paradoxo das teorias do Sul resida na
permanência de sua condição periférica, sem a qual se perdem alguns dos seus
sentidos.
IHU On-Line -
Gostaria de comentar algo não mencionado nas questões anteriores?
Luciana Ballestrin
- Tendo a simpatizar com o diagnóstico de Raewyn Connell
de que estamos ante uma revolução eminente na teoria social. Certamente,
este não é o sentido empregado ao termo por Thomas Kuhn . A teoria como um
instrumento de poder não é uma elaboração nova, podendo ser encontrada do
marxismo ao pós-estruturalismo. Mas a teoria como um instrumento de poder de
uma dada região hemisférica escapou a ambos os cânones. Este é um diagnóstico
mais político do que teórico e envolve a necessidade da (re)politização da
teoria, de alguma forma perdida na infeliz enunciação de que havíamos chegado
ao fim da história.
Fonte original: IHU On-line
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