sábado, 18 de novembro de 2017

O panoptismo de estar constantemente conectado às redes sociais



Patricia Fachin |Tradução: André Langer

A professora e pesquisadora Olaya Fernández Guerrero estuda o fenômeno do controle nas sociedades contemporâneas.
  
A noção de panoptismo, discutida por Foucault há 40 anos, “permite compreender muitas das situações que vivemos atualmente em nossas sociedades, nas quais, sob o pretexto da segurança global, intensificaram–se as medidas de vigilância e controle que se aplicam sem exceção a toda a população e que, às vezes, implicam um corte preocupante das liberdades civis”, diz a filósofa Olaya Fernández Guerrero na entrevista a seguir.

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Segundo Olaya, as novas tecnologias da informação e comunicação têm reforçado “essa visibilidade constante e permanente que tem muito de panóptico”. Nas sociedades atuais, pontua, é possível identificar duas modalidades de panoptismo. A primeira é baseada na vigilância à qual todos os cidadãos estão submetidos pelo poder político. A segunda, explica, é mais “sutil” e aceita pelas pessoas, e “se explicita na pulsão de estar constantemente conectados às redes sociais, compartilhando fotos e informações sobre o que estamos fazendo em cada momento. Este tipo de panoptismo acaba sendo muito poderoso e às vezes acaba gerando nos indivíduos um comportamento viciante e uma dependência das redes sociais que é preocupante, particularmente entre a população mais jovem; por essa razão, é urgente desenvolver uma visão crítica em relação a esse outro panoptismo que está invadindo as nossas vidas”, defende.

Olaya Fernández Guerrero é doutora em Filosofia e professora na Universidade de La Rioja, na Espanha

Confira a entrevista.

IHU On–Line – Em que sentido a ideia de panoptismo, desenvolvida por Foucault , explica as relações de poder, controle e vigilância nas sociedades atuais? Como essa ideia ajuda a entender o nosso tempo?

Olaya Fernández Guerrero – A noção de panoptismo, que aparece nos textos que Foucault escreveu há 40 anos, permite compreender muitas das situações que vivemos atualmente em nossas sociedades, nas quais, sob o pretexto da segurança global, intensificaram–se as medidas de vigilância e controle que se aplicam sem exceção a toda a população e que, às vezes, implicam um corte preocupante das liberdades civis.

IHU On–Line – Quais diria que são os exemplos concretos da manifestação do panoptismo nas sociedades atuais?

Olaya Fernández Guerrero – Atualmente, encontramos muitos elementos que estão estreitamente vinculados ao olhar vigilante e hierárquico, o que é uma das principais características do panoptismo. A instalação de câmeras de segurança em espaços públicos, o controle das comunicações através da internet ou a moda de fazer ‘selfies’ e compartilhar essas fotografias nas redes sociais são alguns exemplos que ilustram esse panoptismo contemporâneo.

IHU On–Line – Por que na nossa época o panoptismo é ainda mais forte e evidente do que na de Foucault?

Olaya Fernández Guerrero – As causas da ascensão do panoptismo são muito diversas. Entretanto, um dos fatores que mais contribuíram para essa mudança são as novas tecnologias da informação e comunicação, que têm uma presença crescente na vida cotidiana dos indivíduos e que reforçam essa visibilidade constante e permanente que tem muito de panóptico.

IHU On–Line – Como essa ideia de panoptismo cria uma nova concepção de sujeito?

Olaya Fernández Guerrero – Os diversos dispositivos panópticos acabam fazendo parte dos processos de criação de subjetividades e transformam–se, além disso, em elementos mediadores das nossas relações sociais e interpessoais. O próprio Foucault já escreveu sobre esta questão, identificando a sociedade contemporânea como uma sociedade disciplinar na qual o dispositivo panóptico cumpre um papel muito importante, uma vez que submete os indivíduos a uma vigilância total e invasiva que acaba produzindo uma interiorização das normas e uma ampla adaptação aos padrões de conduta que a sociedade estabelece para regular cada aspecto de nossas vidas.

IHU On–Line – Como a categoria de povo se relaciona com essa ideia de panoptismo?

Olaya Fernández Guerrero – No contexto do panoptismo, o povo, ou melhor, a cidadania, perde parte da sua autonomia e liberdade de ação e transforma–se em uma coletividade administrada e vigiada, submetida a um regime de visibilidade em que todos, e cada um dos indivíduos, estão sujeitos à supervisão e são colocados sob suspeita.

IHU On–Line – Como a senhora compreende, de um lado, a crítica ao panoptismo e, de outro, o uso que as pessoas fazem, por exemplo, de espaços de vigilância como o Facebook?

Olaya Fernández Guerrero – Existem pelo menos dois tipos, duas modalidades, de panoptismo: uma delas é o panoptismo baseado na vigilância e no controle a que estão submetidos todos os indivíduos pelos poderes políticos, pelas forças de segurança etc., e que é difícil contornar. Este panoptismo é mais fácil de identificar e muitas pessoas adotam uma postura crítica em relação a ele. Mas, nas sociedades atuais, surgiu também outra forma de panoptismo mais sutil, ao qual muitos indivíduos aceitam (aceitamos) se submeter voluntariamente, e que se explicita na pulsão de estar constantemente conectados às redes sociais, compartilhando fotos e informações sobre o que estamos fazendo em cada momento. Este tipo de panoptismo acaba sendo muito poderoso e às vezes acaba gerando nos indivíduos um comportamento viciante e uma dependência das redes sociais que é preocupante, particularmente entre a população mais jovem; por essa razão, é urgente desenvolver uma visão crítica em relação a esse outro panoptismo que está invadindo as nossas vidas.

IHU On–Line – O que seria uma alternativa ou uma resistência ao modelo de controle, vigilância e poder advinda da ideia de panoptismo? Como romper com esse modelo?

Olaya Fernández Guerrero – Para começar a propor opções de resistência, a primeira coisa a se fazer é identificar quais são os dispositivos de controle e vigilância aos quais estamos submetidos, e a partir daí desenvolver uma perspectiva crítica e refletir sobre as maneiras mais efetivas para contornar aqueles modos de controle e vigilância que nos pareçam mais negativos. Na minha opinião, o mais adequado é realizar práticas de resistência de caráter concreto e contextualizado, que devem ser desenvolvidas no âmbito das atividades cotidianas de cada indivíduo.

IHU On–Line – Quais são os exemplos de resistência ao panoptismo hoje?

Olaya Fernández Guerrero – Em relação ao panoptismo ao qual somos submetidos pelos poderes públicos, penso que é importante continuar a questionar o discurso da segurança global, uma vez que em muitos casos este é utilizado como justificativa para cortar as liberdades civis e aplicar modelos de vigilância que são inaceitáveis do ponto de vista ético. Também é preciso fazer um uso mais responsável das redes sociais e, desse modo, evitar contribuir para esse panoptismo ‘voluntário’, ao qual acabamos cedendo cada vez que compartilhamos imagens e informações pessoais nas redes sociais, e que contribui para essa ‘visibilidade total’ e nos coloca em uma situação de vulnerabilidade e de constante escrutínio e sujeição ao olhar alheio

Fonte: IHU- On-line

sexta-feira, 17 de novembro de 2017

Para transcender a colonialidade

Por Luciano Gallas e Ricardo Machado


Luciana Maria de Aragão Ballestrin é bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS, mestre em Ciência Política pela UFRGS e doutora em Ciência Política pela Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG, tendo realizado doutorado sanduíche na Universidade de Coimbra, Portugal. Foi professora assistente substituta na UFRGS e atualmente é professora adjunta de Ciência Política e coordenadora do curso de Relações Internacionais da Universidade Federal de Pelotas - UFPEL. Confira a entrevista.



IHU On-Line - Em síntese, como pode ser definido o “giro descolonial” e seu posicionamento teórico e político pelo colonizado?

Luciana Ballestrin - A ideia de “giro” remete a uma noção de “virada” que talvez seja melhor captada pela palavra em inglês “turn”. No campo das Humanidades em geral esta expressão é utilizada quando ocorre uma transformação, um redirecionamento de determinado assentamento epistêmico, por exemplo, “linguistic turn”, “cultural turn”. Por sua vez, a expressão “decolonial” não pode ser confundida com “descolonização”. Em termos históricos e temporais, esta última indica uma superação do colonialismo; por seu turno, a ideia de decolonialidade indica exatamente o contrário e procura transcender a colonialidade, a face obscura da modernidade, que permanece operando ainda nos dias de hoje em um padrão mundial de poder. Trata-se de uma elaboração cunhada pelo grupo Modernidade/Colonialidade nos anos 2000 e que pretende inserir a América Latina de uma forma mais radical e posicionada no debate pós-colonial, muitas vezes criticado por um excesso de culturalismo e mesmo eurocentrismo devido à influência pós-estrutural e pós-moderna.

O giro decolonial procura responder às lógicas da colonialidade do poder, ser e saber, apostando em outras experiências políticas, vivências culturais, alternativas econômicas e produção do conhecimento obscurecidas, destruídas ou bloqueadas pelo ocidentalismo, eurocentrismo e liberalismo dominantes. Concebe a importância da interação entre teoria e prática, buscando dialogar com a gramática das lutas sociais, populares e subalternizadas dos povos que compuseram e compõem a invenção da ideia de América Latina.

IHU On-Line- De que forma a herança da colonização ainda impacta os indivíduos e a sociedade no mundo globalizado?

Luciana Ballestrin - Como processo histórico, a colonização produziu uma situação colonial — para colonizadores e colonizados — que originou um tipo de violência específica nas sociedades encontradas pelos europeus, a violência colonial. Tendo implicações políticas, culturais, econômicas e epistêmicas, o colonialismo foi operado e reproduzido junto à constituição de outros processos históricos, tais como capitalismo, racismo, imperialismo, ocidentalismo e epistemicídio. Por exemplo, as origens históricas do problema fundiário e do preconceito de raça — uma categoria mental/cultural/política criada a serviço da hierarquização, classificação e subjugação dos povos — que operam persistentemente no Brasil não podem ser explicadas sem considerar o colonialismo externo e interno. O conceito de colonialidade foi construído para contemporizar o colonialismo, lembrando que, mesmo em um mundo supostamente globalizado, as lógicas imperiais e coloniais operam das mais diferentes maneiras, sobretudo nas questões que envolvem as disputas políticas e econômicas entre o Norte e o Sul Global. 

IHU On-Line - Que associação pode ser feita entre os estudos pós-coloniais e os estudos pós-estruturais, desconstrutivistas e pós-modernos?

Luciana Ballestrin - Os estudos pós-coloniais, se entendidos como uma escola difundida pelos estudos culturais e literários da década de 1980 na Inglaterra e nos Estados Unidos, possuem forte influência de todas essas correntes. Sobretudo, nas questões que envolvem a desconstrução de binarismos e essencialismos, a elaboração da ideia de um sujeito não ocidental, a aposta na linguagem e no discurso, a importância do lugar de enunciação da fala. Particularmente, prefiro pensar no pós-colonialismo de forma mais ampla, cujas origens podem ser rastreadas antes mesmo de tantas escolas orientadas pelo “pós”, a fim de contemplar escritos anticoloniais como os de Mariátegui, Fanon, Césaire  e Memmi . 

IHU On-Line - Qual a contribuição da filosofia da libertação para a teoria descolonial?

Luciana Ballestrin - A filosofia da libertação possui bastante influência na inflexão decolonial devido à participação do filósofo Enrique Dussel no programa Modernidade/Colonialidade e sua abertura a teoria crítica latino-americana. Sua influência pode ser observada em várias elaborações do coletivo, com referência especial à ideia de Transmodernidade.

IHU On-Line - É possível perceber, nas sociedades latino-americanas atuais, algum grau de decolonização do poder?

Luciana Ballestrin - A corroboração do argumento pela experiência viria contemporaneamente nas tentativas de refundação do Estado, o chamado novo constitucionalismo latino-americano, a luta dos movimentos sociais e a afirmação de identidades historicamente subalternizadas, como indígenas e quilombolas. Em diferentes pontos do continente se observaria a resistência contra a lógica da modernidade/colonialidade e a constituição de outras formas de relacionamento entre sujeito, Estado, direito e política. No plano prático, o projeto de decolonização política vincula-se ao projeto desocidentalização epistêmica, podendo ser encontrado, em nível institucional, mais evidentemente nos governos boliviano e equatoriano. A democracia se veria aprofundada ao tomar outras referências para as ideias de comunidade, território, natureza e cultura dos povos originários. Basicamente, a ressignificação e decolonização da própria ideia europeia e liberal de sociedade civil. Obviamente, este processo não está livre de contradições e problemas, devendo ser analisado com cautela em termos de continuidades e rupturas.

IHU On-Line - E quanto à teoria política, é possível perceber alguma decolonização da academia?
Luciana Ballestrin - A área de teoria política é particularmente resistente, posto que sensível à proposta da decolonização, visto sua vinculação histórica e epistemológica com o eurocentrismo. Contudo, a proposta de provincialização da Europa, a problematização das identidades colonizadas e subalternizadas, a denúncia da permanência das relações de colonialidade e a demonstração das diferentes trajetórias nas sociedades pós-coloniais de conceitos como os de sociedade civil, cidadania e nação, são contribuições do pós-colonialismo válidas para a elaboração de uma teoria política mais pluriversal e mais atenta às questões das democracias pós-coloniais.

IHU On-Line - Há convivência possível entre a proposta de decolonização do saber e o projeto neoliberal de ciências?

Luciana Ballestrin - Idealmente não, mas na prática ela ocorre. Há sempre o risco de uma “moda” acadêmica que, por mais transformadora que pretenda ser, pode facilmente enquadrar-se em um esquema produtivista e neoliberal do conhecimento, reproduzindo a divisão global do trabalho nas Ciências Sociais. Vários autores das correntes mencionadas trabalham em poderosas universidades do Norte Global, sendo este mesmo um ponto de crítica do qual comumente eles têm de se “defender”. Talvez, o grande paradoxo das teorias do Sul resida na permanência de sua condição periférica, sem a qual se perdem alguns dos seus sentidos. 

IHU On-Line - Gostaria de comentar algo não mencionado nas questões anteriores? 

Luciana Ballestrin - Tendo a simpatizar com o diagnóstico de Raewyn Connell  de que estamos ante uma revolução eminente na teoria social. Certamente, este não é o sentido empregado ao termo por Thomas Kuhn . A teoria como um instrumento de poder não é uma elaboração nova, podendo ser encontrada do marxismo ao pós-estruturalismo. Mas a teoria como um instrumento de poder de uma dada região hemisférica escapou a ambos os cânones. Este é um diagnóstico mais político do que teórico e envolve a necessidade da (re)politização da teoria, de alguma forma perdida na infeliz enunciação de que havíamos chegado ao fim da história.

Fonte original: IHU On-line