sexta-feira, 24 de janeiro de 2020

Colocando devidamente os pingos nos iiis


No decorrer dos últimos anos, ou melhor nas últimas três décadas em particular, nunca se falou, ou se escreveu sobre, dando tanta ênfase, a Educação e o Sistema Educacional. A indagação é: Por que será? Essa ênfase tão entusiástica, de modo repetitivo?

Certamente o que podemos evidenciar é o caráter estratégico a qual a Educação tomou a partir da segunda metade do século XX, especialmente no cenário das sucessivas revoluções tecnológicas ocorridas no pós guerras, contexto este que impactou profundamente o mundo do trabalho e suas relações sociais e produtivas. Além de uma nova configuração geopolítica, tal qual um profundo impacto, ocorrido no tecido social mundialmente, sendo mais drástico nos países da periferia do Capital, mas também propiciando mudanças substanciais na qualidade de vida de milhões de seres humanos nos países centrais do grande Capital. Portanto o que outrora era compreendido como exército de reserva (em Marx), hoje são bilhões de miseráveis que são descartáveis para o capital, haja vista que não são potenciais consumidores e muito menos contribuem para a ciranda financeira e a sua lógica especulativa. Já que a luta diária deste imenso contingente de bilhões de indigentes, reside na sua sobrevivência.

Sim, é nesta conjuntura que a Educação e o Sistema Educacional, passa a ser compreendido enquanto uma ferramenta de extrema relevância, pois na esteira do crescimento econômico, na qualificação de mão-de-obra para o mercado de trabalho na automatização do setor produtivo e na ótica inclusiva, que a Educação passa a obter status e ganhar a consigna de que “só a Educação salva” e é exatamente neste cunho de salvação e de uma certa maneira “redencionista”[1] o qual se atribui à Educação, que se esconde um certo obscurantismo e uma tal de meritocracia, expressão essa tão bradada pelos liberais de plantão.

No entanto, reside sobre esta dicotomia histórica, onde em um determinado tempo secular a Educação foi vista e compreendida pelo Estado com um certo desdém e desprezo, principalmente porque para se forjar mão-de-obra barata e escrava, não se faz necessário o acesso ao conhecimento e tão pouco à vida. Sobretudo se o mote central tinha como objetivo primeiro construir uma legião de analfabetos e outros tantos analfabetos funcionais, para que assim, venha consolidar as relações de poder por parte do Estado burguês. Haja vista que, se não há o conhecimento sobre o próprio e muito menos do contexto histórico a qual encontra-se inserido, jamais será o protagonista sobre si mesmo.

Contudo se no decorrer de séculos a Educação foi vista pelo Estado como desnecessária, pois sob a lógica da monocultura (cana-de-açúcar) e da mão-de-obra escrava, que se imperou no Brasil durante o Período Colonial; tal qual o modesto processo de industrialização tardio, promovido por Getúlio Vargas, sob a batuta do nacional desenvolvimentismo. Portanto é dentro deste cenário que urge por parte do Estado a implementação de políticas, que promova mesmo que tardiamente a universalização do ensino, visando assim superar o déficit educacional a qual o país encontra-se mergulhado.

É isso mesmo?! 
Temos a certeza de que só a Educação salva?

Sim de fato temos a plena consciência da importância da Educação para o pleno desenvolvimento humano, na formação e na construção do sujeito, assim como no seu processo de formação cognitiva e motora. No entanto, temos profundas divergências ao caráter e cunho salvador redencionista o qual vem se atribuindo à Educação, como se fosse possível ela, a Educação por si só capaz de suprir todas as necessidades básicas e elementares para se obter uma vida plena e digna.

Ora vejamos, não é de hoje que estudos no campo da neurociência apontam a relevância de uma boa alimentação, onde se faça presente no cardápio das crianças e adolescentes, um conjunto de nutrientes, vitaminas e proteínas que são essenciais para o bom desempenho educacional, e concomitantemente a ausência destes ingredientes e alimentos nas refeições diárias de milhões de crianças e adolescentes pode acarretar danos e sequelas irreversíveis, impactando diretamente a qualidade de vida e o desenvolvimento humano, entre heranças que podem ser herdadas por uma alimentação deficitária encontra-se: inanição, anemia, raquitismo, entre tantas outras.

O relatório “Síntese de Indicadores Sociais – Uma Análise das Condições de Vida da População Brasileira 2018”. Que é elaborado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), traz dados significativos relacionados às crianças brasileiras. O estudo aponta que 18,2 milhões de crianças de 0 a 14 anos vivem em situação de pobreza no país. Isso representa 43,4% de todas as crianças nesta faixa etária; já a faixa etária que engloba dos 15 aos 29 anos, 30,1% da população encontra-se na pobreza. Considerando uma estimativa mais abrangente que vise a totalidade da população brasileira, em torno de 54,8 milhões de brasileiros viviam em situação de pobreza em 2017, isto é, com menos de R$ 406,00 mensais para sobreviver, números estes que representa ¼ da população do país.


Estes dados somados a porcentagem de que 57% das mães que criam filhos sozinhas vivem sob a égide da pobreza e da miséria, perfaz um quadro sombrio da realidade brasileira. Alinhado a estes dados que remonta o quadro caótico e desumano de milhões de vidas que vão sendo ceifadas e destituídas diariamente, encontram-se outros indicadores sociais que também são fundamentais e compõem as necessidades básicas e fazem parte da dignidade humana.

Neste cenário somente no estado de São Paulo 77,2 mil crianças encontram-se em situação de vulnerabilidade social, digo crianças e jovens que vivem em situação de abusos diversos, negligência e exploração. Para sermos mais precisos são 77.290 crianças e jovens que vivenciam a precarização da vida em seu extremo, faremos aqui um pequeno recorte, estes dados se referem tão somente a São Paulo capital e em especial aos bairros e regiões que se situam no centro do Capital e nos bairros mais próximos.[2]

Não obstante a esta crueldade, destaca-se os números apresentados pelo IBGE que revelou no início do mês de novembro (2019) que 13,5 milhões de brasileiros ou 6,5% da população vivem com menos de US$1,9 diários, que pela cotação atual está girando em torno de menos de R$ 8,00 por dia, enquanto 52,5 milhões têm como renda diária o equivalente US$5,5 , renda esta que espelha com fidelidade as mazelas a qual a sociedade está inserida. Outro espectro desta realidade hedionda encontra-se presente no relatório – “Cenário da Infância e Adolescência no Brasil (2019)”, apresentado pela Fundação Abrinq, que aponta a estarrecedora estatística onde 47,8% das crianças brasileiras vivem na pobreza e têm nas escolas ao longo de seu ano letivo, a única refeição do dia, sendo assim o período de férias escolares torna-se algo aterrorizante, pois haverá poucas ou quase nenhuma alternativa perante à fome que é crônica e sistêmica e reside na instituição escolar a única refeição do dia.

Podemos agregar outros dados que certamente são significativos e compõem o quadro de invisibilidade a qual milhões de seres humanos no Brasil encontram-se submetidos, onde necessidades básicas e elementares à dignidade humana são restritos a poucos. O painel Saneamento Brasil, divulgado pelo Instituto Trata Brasil, reflete o retrato do abandono e da descartabilização do grande contingente de miseráveis, produzidos pelo Capital. Segundo os dados apresentados, 100 milhões de brasileiros não têm coleta de esgoto e apenas 44,2% dos esgotos no país são tratados. Além de 35 milhões de brasileiros não têm acesso à água potável. Condições estas, que são fundamentais para a propagação de doenças como: verminoses, hepatite-A, diarreias, leptospirose e esquistossomose. Doenças estas que revelam áreas onde a infraestrutura é inexistente ou precária.

Em todo caso, a indagação persiste – Será mesmo que só a Educação salva? O cuidado que devemos ter, com certos discursos

Sim de fato ¼ da população brasileira vive com 420 reais mensais, em números gerais estamos falando de uma população estimada em 55 milhões de habitantes aproximadamente. Este dado se encontra o documento - “Síntese dos Indicadores Sociais 2019”, divulgado pelo IBGE. Este mesmo relatório acrescenta que esta pobreza tem uma pigmentação de pele definida, pois ela atinge principalmente a população preta e parda, que representa 72,71% dos pobres, em torno de 38,1 milhões de seres humanos, em especial as mulheres pretas e pardas que são 27,2 milhões de seres humanos que se encontram abaixo da linha da miséria.

É irrefutável que a ausência de Políticas Públicas implica na qualidade de vida e na dignidade humana, sim não podemos negar que a precarização da vida em suas múltiplas variantes torna o cotidiano insuportável e reflete diretamente no processo de aprendizado.

Outro aspecto significativo e que estamos chamando atenção, reside nas Políticas de Segurança Pública focadas no terrorismo de Estado, ceifando a vida de milhares de pessoas, especialmente da população, negra, pobre e favelada. Esta política torna-se mais contundente nas periferias, principalmente nos morros, vielas, becos e favelas das grandes metrópoles brasileiras. Políticas estas que compõem um sistemático genocídio do imenso contingente de seres humanos que são descartáveis pelo grande Capital.

Somente neste ano de 2019, no Rio de Janeiro em especial a polícia matou 1546 seres humanos, que tiveram suas vidas ceifadas pela lógica do aparato repressivo de Estado. Portanto estamos falando sobre uma máquina de morte e que tem como mote central triturar vidas humanas. Fica aqui, evidenciado que esta política é parte de um projeto de eliminações sumárias de um grande contingente populacional que se encontra à margem do sistema. Este número foi apresentado pelo ISP (Instituto de Segurança Pública). Não obstante a este dado estarrecedor, encontra-se mais de 20 crianças e adolescentes mortos, fruto de operações policialescas nas favelas, morros e periferias. Ou seja, vidas e sonhos que foram interrompidos brutalmente.


A cultura de terror e ódio que é promovida pelo Estado terrorista, produz sequelas e heranças terríveis em milhares de crianças e adolescentes. Não é por acaso que estas crianças e adolescentes tenham herdado uma série de traumas e transtornos psíquicos, como: síndrome do pânico, transtorno de ansiedade, espasmos, estado depressivo, fragilidade emocional, entre tantas outras motivações que implicam no processo de aprendizagem de crianças e adolescentes em idade escolar. Que, adicionado a um projeto político-pedagógico arcaico e que tem como foco o ensino, de modo duro enrijecido no tempo e espaço, torna o ambiente escolar um ambiente pouco atrativo e acolhedor.

Por fim, fica aqui evidenciado ao conjunto de leitores deste texto, que o caráter redentor e salvacionista que tenta atribuir à Educação, não passa de uma falácia. Tendo em vista que, a Educação por si só não supre todas as necessidades básicas e elementares para uma vida digna e saudável. Entretanto o caráter redentor e salvacionista, que é desenhado pelos órgãos estatais e pela mídia burguesa, também é alimentado por instituições e entidades do terceiro setor. Contudo este discurso, se torna perigoso como hediondo, já que minimiza outros aspectos que certamente são significativos como essenciais para o processo de aprendizagem, assim como para o desenvolvimento cognitivo e motor.

Portanto não tenho dúvidas que as políticas de desenvolvimento humano geram um impacto preponderante na qualidade de vida de milhões de crianças e jovens, que se encontram mergulhados numa realidade desumana. E que certamente são premissas importantes no grande contingente de crianças, jovens e adolescentes que evadem os estudos em idade escolar. Por fim, é aí que reside o perigo, que estas instituições, seja de modo proposital e perverso como é o caso – órgãos de Estado e mídia burguesa – ou seja, através de uma crença em demasiado de políticas paliativas que visem minimizar a miséria – como as organizações do terceiro setor.

É neste contexto que estas organizações e instituições se apropriam de exemplos isolados com o único intuito e propósito de justificar o injustificável, que é a naturalização da miséria e da dor humana. Neste sentido a louvação por situações pontuais e esporádicas com em determinados casos onde ocorreu um êxito específico; é tratado com todo esplendor e pompas, gerando assim a famigerada meritocracia. Esta política, tal qual o seu discurso é tão tosco, quanto fascista e devemos estar atentos ao seu caráter doentio e maléfico para a vida de milhares de crianças e jovens.

José Roberto Magalhães - Pedagogo (UERJ)
Educador Popular, estudioso e pesquisador em Educação



[1] No sentido de redenção.
[2] Este estudo compõe o relatório – “A criança na vulnerabilidade, retrato nas infâncias na cidade de São Paulo” – elaborado pela Visão Mundial.


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